Ambientado na tríplice fronteira, Los Silencios une fantasia e afeto na telona
Na última década, os campeões de bilheteria do cinema nacional foram comédias com base em um humor televisivo e que valiam-se de estereótipos para a criação de seus personagens. Logo, fica até complicado para parte do público entender que, desde os primórdios das nossas imagens em movimento, o Brasil sempre teve um pé no fantástico e no cinema de gênero . Como duvidar do poder para criar tramas imaginativas tendo um folclore como o nosso, tão rico em criaturas misteriosas, ou uma natureza tão vasta e, ao mesmo tempo, tão assustadora? A cineasta Beatriz Seigner resolveu se deixar levar pelas histórias que o povo conta e sua curiosidade pelas crenças da América Latina para criar Los Silencios, seu segundo longa-metragem. E o resultado é de encher os olhos e a alma.
Premiado nos festivais de Havana e Brasília, além de ter sido bem recebido em mostras na Índia e na Europa, o filme acompanha a trajetória de Nuria (María Paula Tabares Peña), uma menina de 12 anos que, após o desaparecimento do pai Adão (Enrique Diaz) durante os conflitos armados na Colômbia, muda-se com a mãe Amparo (Marleyda Soto) e o irmão Fabio (Adolfo Savilvino) para uma ilha, localizada na tríplice fronteira do país com o Peru e o Brasil. Ironicamente, o local se chama Ilha da Fantasia e realmente existe, às margens do Rio Amazonas. Em meio as casas de palafitas e vizinhos que falam vários idiomas, a menina reencontra o pai, que a própria polícia local dava como morto. Isso é só o começo de Nuria em sua descoberta do mundo. A temática não é nova, mas é a atmosfera construída por Seigner, que também assina o roteiro, que torna Los Silencios uma pérola entre as produções brasileiras atuais*.
(*Confira também a crítica de Temporada)
A câmera não tem pressa, parece contaminada pela calmaria da ilha. Os rostos comuns dos moradores contrastam com os detalhes que plantam no espectador a dúvida: será apenas a história de uma família tentando recomeçar? Por que o reaparecimento do pai parece não ter o impacto que deveria na vida da garota? São perguntas que nos rodeiam ao longo de toda a exibição, mas que não atrapalham o deleite com as tomadas simples e poéticas e a fotografia que intercala um belo aproveitamento da luz natural com uma aura mágica dada pelas lamparinas que garantem as trocas noturnas entre os moradores. Magia que vai ir além e transformar Los Silencios em uma fábula fantástica genuinamente latina.
Diferente de outros realizadores, que insistem em ter como base o universo fantástico americano ou europeu para criarem suas histórias, Seigner aproveita o natural encantamento das crenças do povo latino para conduzir sua trama. Ter uma família como protagonista, vista sob a ótima de Nuria, já entrega a forte ligação que o sangue tem para estas pessoas. Ao ponto de subverter as regras humanas e manter todo unidos em outros mundos. Vivos e mortos em harmonia, sem sustos, vivenciando quase uma rotina. Eis a América Latina.
Elenco sensível
A opção por ter pessoas da comunidade como protagonistas atuando ao lado de atores experientes como Enrique Diaz foi certeira. A naturalidade com que Nuria e seu irmão Fabio percorrem os rios e vielas da Ilha da Fantasia garante simpatia imediata do espectador. Acreditamos em cada gesto, até o mais surreal. O plano em que toda a família está dormindo na mesma cama, filmado em plongée, transmite um carinho simples e, justamente por isso, muito verdadeiro. Durante a coletiva de imprensa realizada no Festival de Brasília do ano passado, onde Los Silencios fez sua primeira exibição no país, era visível a cumplicidade entre Diaz e a pequena María Paula Tabares Peña. Não e à toa que refletiu diante das câmeras.
Vale destacar também a participação de Doña Albina, no papel de Abuelita. Quer símbolo maior das lendas de um povo que uma senhora com o rosto marcado pela vida e que fala de fantasmas como quem passa uma receita de bolo? Uma personagem que merecia um filme só seu, mas que encaixa muito bem na trama. Faz lembrar, inclusive, uma homônima da animação, a Abuelita de Viva! A Vida é Uma Festa. Ambas tratam com naturalidade a morte e acrescentam a essa situação ainda complexa para a maioria das pessoas uma naturalidade e até um certo romantismo. Partimos, mas isto não seria propriamente um fim.
Sutil e inteligente, o roteiro de Los Silencios sabe a hora certa de apresentar aos espectadores cada uma de suas camadas. Sim, há surpresas próximo ao seu final, mas plot twists arrebatadores não são a escolha do dia. Estamos diante de um filme com uma calma de interior, mas que causa ansiedade no público, que quer descobrir o destino de Nuria e sua família, assim como de todos os moradores da Ilha da Fantasia. O universo fantástico do longa tem forte influência das primeiras obras do tailandês Apichatpong Weerasethakul, em especial o ótimo Mal dos Trópicos, de 2004.
Los Silencios não deve bater recordes de bilheteria, mas está emocionando o público e a crítica fora da nossa terra natal. Filmes não tão populares, como é o caso aqui, nem sempre conseguem espaço em muitas salas e ficam poucas semanas em cartaz. Porém, se você chegou até o final deste texto, talvez seguindo o fluxo que esta que vos escreve tentou emular e que exala de cada minuto do longa metragem da diretora brasileira, dê uma chance e vá ao cinema. As cores e o neon mágico de Los Silencios merece a maior das telas.