Spinning é o retrato de uma época complicada da vida – mas que todos vivemos
Todo mundo precisa de um porto seguro. Um lugar ou alguma coisa para onde ou em que nós possamos nos recolher, escapar; nos reduzir, para que possamos recuperar nossas forças e expandir novamente. Para alguns de nós, este lugar de clareza e claridade vem mais tarde, com o amadurecimento natural. Para outros, como relata Tillie Walden em Spinning, ele vem mais cedo, muitas vezes por necessidade.
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Lançado recentemente pela Veneta, o volume autobiográfico relata as experiências e descobertas de vida durante os 10 anos em que a autora esteve envolvida com um esporte pouco relacionável para nós, brasileiros: a patinação no gelo. Mas se o tema para um tanto alienígena às terras ao sul do equador, é preciso dizer que ele é menos relevante per se, e mais pelo que ele representa para a autora – o supracitado porto seguro.
Quando a HQ tem início, Walden acabara de se mudar, vinda de New Jersey para o Texas. Para o amigo leitor que talvez não conheça bem a geografia ianque, é um tremendo choque de realidades: climáticas, sociais, culturais, etc. É quase como mudar para outro país, que só fala a mesma língua. E é exatamente esse tipo de diferença nas quais se calcam as experiências e aprendizados da autora nesse período: Tudo era novo quando não deveria ser.
Confira as resenhas de Jeanine e Carolina !)
O sentido da última afirmação é pensar no fato de que essa mudança drástica acontece durante um período da vida de Walden em que ela mesma passa por mudanças particulares; o famigerado amadurecimento, o período em que saímos da asa de conforto dos nossos pais e casa, e passamos a enfrentar o mundo e formar nossas opiniões. Não sei a que distância o amigo leitor agora está dessa época, mas com a experiência que este colunista tem após mais de uma década lidando com adolescente em sala de aula, afirmo com alguma convicção: Provavelmente não foi tão agradável ou tranquilo quanto você se lembra. Nem para você, nem para as pessoas a sua volta.
Por isso, a patinação acaba dando a Walden um certo senso de continuidade. Por mais que os rostos – e até mesmo algumas expressões técnicas – fossem diferentes neste “novo país”, a experiência permanece a mesma. Dentro do rinque, a autora encontra uma maneira de se soltar e encontrar liberdade; e, em muitas medidas, a si mesma. Pois a vida fora do bloco de gelo, por irônico que possa parecer, pareceu em muitos momentos mais fria do que dentro dele.
Melancolia
Sobre esse aspecto, é de se valorizar as escolhas estéticas que ela faz para o volume, demonstrando um tremendo domínio sobre a linguagem mesmo bastante jovem – a comparação, justificadamente feita, que se encontra bastante em outros textos, é que seu trabalho aqui ecoas aspectos dos primeiros de Adrian Tomine. A HQ trabalha quase que exclusivamente com uma cor roxo-azulada, quebrada pontualmente apenas por tons de um amarelo sóbrio. Traços e narrativa visual são minimalistas: mostram apenas o que precisa ser mostrado, mantendo o foco na narrativa, sem deixar de ser agradável aos olhos.
A intenção, de alguma forma, transmite tanto a frieza do ambiente, uma possível outra metáfora ao ringue, como a melancolia enfrentada muitas vezes pela autora durante esse período. Melancolia essa oriunda tanto do bullying que eventualmente sofria, quanto da discriminação pelo fato de ser homossexual. A vida de Walden encontra muitas alegorias no seu esporte de escolha: Em determinados momentos, tudo parece fluir com calma e alguma graça. De repente, tudo começa a girar, rápido demais, colocando autora e leitores em outra direção completamente oposta.
Há um certo humor – ou ainda maior melancolia, dependendo de como se interpreta a leitura – nisso. Walden narra momentos pivotais da sua vida com certo distanciamento e frugalidade, mas se concentra largamente nas consequências deles. Há um certo momento bastante emblemático em que um membro da sua família faz um comentário profundamente cruel sobre a sexualidade da autora; o tipo de coisa que fica gravada como ferro quente em nossas emoções. No entanto, na HQ, isso ocupa pouco mais que alguns quadros. Mas as consequências são exploradas a fundo, sempre tendo como fio condutor seu trajeto dentro do rinque: um recurso visual que serve tanto como alegoria para a narrativa quanto âncora para sua própria história naquele momento.
Viver e patinar
O que implica, novamente, em uma grande maturidade da autora. Escrever autobiografia é algo muito difícil – não à toa, prováveis 80% dessas que encontramos em livrarias são realizadas por escritores-fantasmas. No entanto, Walden não peca em algo muito comum a este segmento: Imergir de maneira hermética ou bagunçada em suas próprias lembranças. Nós não somos meras testemunhas de Spinning, nem a autora está meramente vomitando uma sessão de terapia sobre nós. Existe autoconsciência aqui – motivo pelo qual essa HQ poderia muito bem ser o próximo presente de alguma adolescente passando por essa época difícil que o amigo leitor possa conhecer.
Talvez por isso, a única ressalva que possa ser feita a HQ é essa: o leitor mais casual e mais velho talvez precise fazer um certo exercício de empatia para ser atingido pelas reflexões da autora. Nossas adolescências, agora, talvez possam parecer memórias distantes, mas acredite: O que ela fez em e por nós permanece do lado de dentro.
Spinning é o recorte da vida de uma pessoa. Particularmente para este colunista, um recorte que poderia ser o meu. Eu também tive meu porto seguro, este lugar de clareza e claridade. No entanto, o meu veio um pouco tarde demais. Mas até aí, qual seria a graça se todas as nossas trajetórias fossem iguais? Na patinação, como na vida, a graça está em ver o que cada um pode fazer e como pode se expressar.
Embora, devo admitir, o pouco que agora sei sobre patinação já é um pouco mais do que sei sobre a vida…