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O Canto das Ondas – Beleza na efemeridade!

O Canto das Ondas usa a fábula para aprofundar a ficção – ou vice-versa

Imagine uma história independente de X-Men escrita por Neil Gaiman. Essa inusitada proposta é o sumo final de O Canto das Ondas, de Marco Rincione e Loputyn (Jessica Cioffi). Esse volume é o terceiro da série TIMED, e foi publicado aqui em 2017 pela Shockdown.

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Resenha de O Canto das Ondas

O Canto das Ondas se passa em um futuro próximo, no ano de 2030. O cenário geopolítico global é bastante tenso: Em uma escalada dos modelos socioeconômicos vigentes no mundo atual, dois grupos formados por empresas multinacionais criam um novo modelo de Estado conhecidos como Difusos, cujas facções disputam o controle do status econômico e político do mundo. Nesse contexto, surgem os TIMED´s, pessoas com habilidades sobre-humanas, que são usadas frequentemente como armas e dissuasores por grupos de interesses no mínimo escusos. Colocando dessa forma, realmente parece um spin-off de X-Men. Mas os TIMED´s possuem um ônus trágico: seus poderes têm duração limitada e, quando se esgotam, a vida de seus usuários também se encerra.

Essa sinopse, entretanto, não faz jus ao que realmente é mostrado na curta narrativa de 64 páginas. O Canto das Ondas é, antes de tudo, uma fábula de amor e perda. Parte de uma “trilogia” localizada no mesmo universo (que também tem Rio 2031 e Vidas de Papel) mas que funciona muito bem de forma independente, todo esse contexto descrito acima é a moldura. A narrativa se foca nos detalhes da pintura.

Resenha de O Canto das Ondas

A espuma sobre as ondas

Esse detalhe em particular é Claudia, jovem habitante de Trieste que possui o dom de ouvir as vozes das criaturas do Oceano. Essas vozes narram para a imaginativa adolescente histórias épicas, trágicas, de idos há muito esquecidos, que apenas alimentam seus devaneios diurnos. Uma das vozes desse coro, que atende por Asburgo, acaba se tornando uma intensa paixão de Claudia, e uma das poucas razões que dão ímpeto às ações da jovem.

A nota interessante sobre a trama é o fato de que todo o contexto macro é transmitido indiretamente. Apenas um breve glossário no início da HQ nos localiza no espaço e no tempo, e breves vozes de fundo dão mais orientações sobre Trieste e seus arredores. Pois todo o foco gira em torno de Claudia, seu amor e sua intensa busca por significado no escapismo calcado nas fábulas narradas pelas vozes do mar. Embora os TIMED´s sejam uma realidade, Claudia não sabe realmente se é um deles; seu poder, se é que é realmente um poder, não tem o menor potencial bélico, e sua perspectiva da existência – assim como da HQ em si – não poderia passar mais longe de tais preocupações.

Na verdade, esse ensejo é o que dá uma das notas mais trágicas da narrativa: Enquanto Claudia está imersa (trocadilho pretendido) em si mesma e na sua abstrata relação com Asburgo, a moldura da pintura implode sobre ela, na forma de caçadores de TIMED´s, que desejam eliminá-los a todo custo.

Resenha de O Canto das Ondas

Fábula e tragédia

Exatamente por isso, a escrita de Rincione encontra ecos de Gaiman: nada é dito de forma explícita e tudo permanece no limite da realidade e da fantasia, até que a compreensão do todo venha tarde demais. O que o autor faz é essencialmente criar uma narrativa fabulosa, no sentido estrito do termo, para velar e colorir debates e ideias que, no fundo, são bastante pertinentes, e de fato ligam os TIMED´s aos famosos mutantes da Marvel: Preconceito, discriminação, homofobia, xenofobia, etc. Desnecessário dizer que, 3 anos depois, os temas indiretamente narrados aqui parecem mais atuais do que nunca.

Adiciona-se a isso os delicados traços e cores de Loputyn, que criam dão o tom onírico necessários para a trama. Com uma paleta de cores em tons pastéis derivados de azuis e cinzas, parece que estamos a todo momento imersos sob ondas, como se estivéssemos vendo a narrativa acontecer pelo ponto de vista das vozes oniscientes que a narram. Sua condução visual é fluida, assim como a trama apenas pontualmente converge a pontos mais duros e tensos, os desenhos e cores raramente se destacam em tonalidades fortes; o que faz com que se torne ainda mais chocante quando as cores fogem a esse padrão. Junto com Vidas de Papel, O Canto das Ondas é uma das duas grandes obras desse universo TIMED – exponencialmente melhores do que Rio 2031 – e oferece uma perspectiva intimista e metanarrativa do fantástico em uma realidade que, muitas vezes, é tão dura quanto a nossa própria.

Seu único defeito é sua breve duração. Que talvez não seja bem um defeito, e sim uma lembrança do quanto as mais belas histórias que podemos ouvir também podem ser igualmente efêmeras e passageiras em nossas memórias.

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