O primeiro polo cinematográfico norte-americano estava em Jacksonville, na Flórida
Você nunca associou a cidade de Jacksonville ao mundo do Cinema? Estamos aqui para resolver isso. Quando pensamos na Califórnia, muitas coisas vêm à cabeça: calor, palmeiras, mansões, rodovias, mas, principalmente, Hollywood. O distrito mais famoso da Costa Oeste dos Estados Unidos é, desde os anos 1910, parte da Cidade de Los Angeles e um dos mais prolíferos polos cinematográficos do mundo. Porém, o que pouca gente sabe (mesmo dentro dos Estados Unidos) é que, antes de Hollywood, a produção cinematográfica estava concentrada na Costa Leste, principalmente nas cidades de Nova York e Chicago. Lá eram produzidos quase 100% dos filmes do início da era cinematográfica americana.
Mas o revés era o frio, desde sempre, rigoroso naquela região. A produção cessava por completo nos meses de inverno e a receita das produtoras e estúdios caía consideravelmente, ficando dependente da bilheteria dos filmes produzidos durante o verão. Foi então que, em 1907, um dos primeiros estúdios a se aventurar em outras regiões, o Kalem Film Company, enviou, para o estado da Flórida, um emissário a procura de um local para estabelecer as filmagens de inverno.
Ao chegar em Jacksonville (cidade batizada em homenagem ao 7° Presidente Americano, Andrew Jackson), ele se surpreendeu. A cidade possuía ampla malha ferroviária (era possível chegar e sair de trem para qualquer lugar, o que facilitaria o transporte tanto da equipe quanto do equipamento), tinha temperaturas amenas o ano todo (mesmo no inverno, a média é de 20 °C), havia toda uma estrutura de metrópole, com prédios modernos recém-projetados devido ao grande incêndio que destruiu o centro da cidade em 1902, e muito espaço para novas e grandes construções, além de cidades adjacentes, como a histórica St. Augustine (a mais antiga dos Estados Unidos), com construções de época e muito espaço verde. Era o lugar perfeito para estabelecerem uma filial.
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Em 1908, a mesma Kalem Film Company foi a primeira empresa a estabelecer uma locação fora de estúdio para uma produção. O filme, Love in the Everglades, trazia uma temática um tanto quanto polêmica para a época: durante uma briga, o marido mata a mulher ao jogá-la em um pântano com crocodilos. Os cidadãos da Flórida sentiram-se ultrajados, pois essa seria a imagem da cidade vendida para todo o país. Os donos de outros estúdios, porém, viram ali algo único e inédito: com a paisagem natural e ampla iluminação solar, a Flórida se mostrava um destino atrativo para que as produções não parassem nunca. Logo, outros estúdios, como a Metro (depois, Metro-Goldwyn-Mayer) e a Fox Movietone (depois, 20th Century Fox) se instalaram por lá e, em pouquíssimo tempo, Jacksonville tinha grande parte de sua receita advinda das produções cinematográficas tornando-se, oficialmente, A Capital Mundial dos Filmes de Inverno.
Edson, Thomas Edson
Dentre os grandes nomes que atuaram na indústria cinematográfica de Jacksonville estão Rodolfo Valentino, o galã da época, considerado o primeiro sex symbol masculino e detentor de grande bilheteria, com sua exótica beleza e atraente nome latino, e Oliver Hardy, conhecido pela dupla com Stan Laurel (no Brasil, conhecidos como O Gordo e o Magro). Hardy, inclusive, foi um prolífero ator, fazendo, de 1913 a 1915, mais de 50 filmes para os estúdios Lubin. Mary Pickford, uma das principais atrizes do início do século passado, pioneira em protagonismo feminino e uma das fundadoras da United Artists, com Charles Chaplin, Douglas Fairbanks e D.W. Griffith, também estava lá e, por um breve período, o próprio Chaplin fez alguns filmes para os estúdios Vim and King Bee. Mas havia uma pedra no meio do caminho. E o nome dela era Thomas Alva Edson.
Thomas Alva Edson (1847 – 1931), foi um dos maiores inventores de todos os tempos, detentor de mais de duas mil patentes nos Estados Unidos e mais de 500 internacionalmente. A ele é atribuído o aprimoramento do cinetoscópio, equipamento de projeção inspirado em uma invenção do francês Louis Le Prince, bem como o quinetógrafo, equipamento que captava as imagens a serem projetadas. Naquela época, os equipamentos de Edson passaram a ser utilizados por quase todos os produtores cinematográficos dos Estados Unidos.
Edson criou, em 1908, uma empresa de patentes chamada Motion Picture Patents Company (comumente chamada de Edson Trust), junto com o maior distribuidor de filmes da época, George Kleine, um dos fundadores da Kalem Film Company e representante comercial de Edson em Chicago. Outros grandes estúdios e a Eastman Kodak, fornecedora dos rolos de filme, se juntaram a Edson a fim de regulamentar a competição entre as fundadoras, e levar larga vantagem, uma vez que ele era o detentor da tecnologia. Os participantes do Trust teriam benefícios financeiros na aquisição ou locação de equipamentos e na distribuição dos filmes e, aqueles que não faziam parte, teriam de pagar altas taxas e impostos pelo uso destes. Assim, as produtoras começaram a migrar, inicialmente para a Flórida e, posteriormente, para Califórnia, Bahamas e Cuba, a fim de fugir do controle do Trust.
Foi então que algo curioso aconteceu. Edson, que viu na produção de equipamentos para cinema e distribuição dos filmes uma forma de lucro, não patenteou seus inventos nesta área por considerar que o cinema, como entretenimento, não sobreviveria. Assim, inventores e aprimoradores, como os irmãos franceses Louis e Auguste Lumière, que desenvolveram um modelo de cinematógrafo mais comercial, de melhor manuseio e baixo custo de manutenção, tiveram sobrevida e encontraram nas produtoras e estúdios fora do Trust o seu público alvo. Esse fato, aliado às isenções de impostos oferecidas pelo governo da Califórnia, que buscava uma forma de fomentar o crescimento econômico de Los Angeles após a construção do aqueduto, e a campanha anti-estúdios estabelecida pelo então candidato e, depois, prefeito eleito de Jacksonville, J.E.T. Bowden, depois de 1915, praticamente zeraram a produção na Costa Leste dos Estados Unidos. Era o começo do fim para a “Capital de Inverno”.
Os últimos sobreviventes e os “Filmes de Raça”
Uma das empresas a se instalar na vizinha Arlington (hoje um distrito de Jacksonville) foi a Eagle Film City, que, em 1921, foi adquirida pelo jovem diretor cinematográfico Richard Norman. A partir daquele momento, percebendo a carência de produções para o publico negro (chamadas, naquele tempo, de “Filmes de Raça”), Norman focou 100% de sua produção nesse mercado, escrevendo, produzindo e dirigindo filmes com elenco totalmente negro em papeis empoderados e fora dos estereótipos da época. Nascia o Norman Silent Film Studios and Laboratories. Detalhe: Richard Norman era branco.
Jacksonville, no início do século passado, se consolidava como uma cidade segregada, como toda a região do norte da Flórida. Richard Norman se destacava por produzir filmes para o público negro com roteiros diversificados (comédia, drama, aventura e ação), em uma época em que os estúdios eram especializados em um determinado gênero, sem variações. Além do talento para a roteirização, Norman mantinha um clima amistoso em seu estúdio e, durante as produções, vivia com sua família, o elenco e a equipe em acomodações dentro da propriedade, o que despertava a ira da ala mais conservadora da cidade, composta, inclusive, por membros da Ku Klux Klan. Norman manteve sua produção até os anos 1930 e criou clássicos do gênero, como o filme de mistério The Green Eyed Monster, de 1919, e a aventura The Flying Ace, de 1927, com a atriz Kathryn Boyd em um papel inspirado na aviadora negra Bessie Coleman, com quem Richard Norman havia iniciado um contato a fim de tê-la em um filme.
Coleman, a primeira mulher com licença de pilotagem nos Estados Unidos, morreria tragicamente em uma queda de avião, em 1926, ao praticar acrobacias para um número artístico que faria em Jacksonville. Em sua homenagem, foi escrita a personagem de Boyd, Ruth. Um dos grandes truques do diretor, nesta produção, foi filmar o avião de vários ângulos, inclusive de ponta-cabeça, a fim de dar um ar de autenticidade para as cenas no ar. Ah, o tal avião nunca deixou o solo.
Norman, também um inventor, criou um sistema de sincronização entre áudio e vídeo, possibilitando os primeiros filmes falados. Sua tecnologia, porém, tornou-se obsoleta ainda na década de 1920, com o lançamento, pela Warner Bros., de O Cantor de Jazz (1927), o primeiro filme totalmente falado. Ele permaneceu na indústria até falecer, em 1960, atuando na distribuição e na produção de materiais institucionais.
O local onde era o Norman Studios é hoje o Museu do Filme Mudo Norman Studios, organização não-governamental formada para preservar e divulgar a história da produção cinematográfica focada no público afro-americano, bem como preservar a memória de Richard Norman e seu pioneirismo (cinematográfico e social) na produção deste gênero. A propriedade, abandonada até meados dos anos 1990, foi redescoberta pela residente de Arlington, Ann Burt, que, juntamente com a sociedade histórica local, mobilizou o Estado da Flórida para a importância do local. Finalmente, em 2002, o governo comprou a propriedade e, desde 2007, faz lentas reformas. Atualmente, também é possível a doação, pela Internet, para ajudar na restauração dos quatro prédios comprados pela cidade, bem como a compra do quinto e último prédio do complexo, hoje pertencente a uma igreja. Você pode fazer sua doação aqui.