Na sexta-feira, 28 de fevereiro, estreia na rede de TV norte-americana NBC a segunda temporada da série Hannibal, polêmica desde que se veio a público a ideia de trazer o célebre canibal Hannibal Lecter – imortalizado no cinema pela monumental interpretação de Anthony Hopkins – sob a pele do quase desconhecido Mads Mikkelsen, ator dinamarquês até então marcado pelas participações em Cassino Royale (2006) e Rei Arthur (2004). Mais que isso, a série se propôs a mostrar passagens do personagem não mostradas nos livros de Thomas Harris, onde surgiu, o que poderia criar um frio na barriga nos inflamados fãs do serial killer. Ok, a versão televisiva da vida de Lecter é bem sucedida ao transpassar o mundo sombrio do assassino através de recursos técnicos eficientes, roteiro equilibrado e atuações competentes. Mas a nova temporada não deixa de ser recebida com certa surpresa pelos críticos, visto que os primeiros episódios perderam quase metade da audiência nos EUA ao longo do primeiro ano de exibição, depois de uma estreia também não tão espetacular quanto esperado.
Tecnicamente, Mikkelsen não faz feio em cena. Consegue exprimir as sutilezas da personalidade conflitante do personagem, que se divide entre a ojeriza à sociedade e a obsessão por espíritos complementares ao seu, características permanentes em todas as aparições de Lecter em filmes e livros. No entanto, o ator estará sempre à sombra de Hopkins e o trabalho em O Silêncio dos Inocentes (1991), que poderia entrar, sem contestações, em qualquer lista sobre as melhores atuações da história do cinema.
Verdade seja dita, O Silêncio…é uma obra-prima resultado de talentos conjuntos, seja pela afinidade do elenco com personagens extremamente complexos, na fotografia angustiante de Tak Fujimoto, da ambientações gótica primorosa nas mãos do diretor de arte Tim Galvin ou na perturbadora trilha sonora assinada por Howard Shore, já então muito respeitado pela parceria com David Cronenberg. No entanto, a adaptação do texto de Thomas Harris pelo roteirista Ted Tally (o exemplo máximo de que são possíveis excelentes filmes a partir de bons livros) e a direção firme de Jonathan Demme sobre tantas forças reunidas, são os grandes referenciais que tornaram esse longa um clássico. O Silêncio dos Inocentes foi o terceiro filme da história a vencer as cinco principais categorias do Oscar: Filme, diretor, roteiro, ator e atriz. Antes dele, apenas Aconteceu naquela Noite (1934) e Um Estranho no Ninho (1975), haviam conseguido tal feito.
Assim como a série de TV joga luzes sobre as qualidades de O Silêncio… o mesmo vale, mas em diferentes circunstâncias, para as fracas – e até ofensivas – sequências do filme premiado. Animado com o sucesso de sua obra, Thomas Harris resolveu esticar a corda da sua criação mais famosa, com títulos como Hannibal e Hannibal: a origem do mal, livros escancaradamente escritos para serem transportados para o cinema. Mesmo a presença de Anthony Hopkins nas continuações não foi suficiente para segurar a qualidade das aparições posteriores de Lecter. A produção de 1991 permaneceu intocada por 10 anos, até a estreia de Hannibal em 2001, trabalho feito com um bom time de atores, mas com a marcante ausência de Jodie Foster como Clarice Starling, alter-ego de Lecter, substituída por Julianne Moore. Na direção, nada menos que Ridley Scott, diretor cuja carreira é uma gangorra entre películas memoráveis e outras que poderiam muito bem ser esquecidas. Infelizmente, Hannibal pertence ao segundo grupo. Não há nada daquele terror psicológico magnifico que permeia todo filme anterior, mas sim uma sangria desatada e inverossímil.
Um ano depois, estreava Dragão Vermelho (2002), nova adaptação do primeiro livro de Harris sobre o psicopata (que já havia gerado uma versão para o cinema em 1986: o esquecido Manhunter – Caçador de Assassinos, em que Lecter, interpretado pelo ator escocês Brian Cox, passa quase despercebido nos poucos minutos em cena). Dirigido por Brett Ratner, dos bobos A Hora do Rush 1 e 2, a obra supera o antecessor de um ano antes com Hopkins novamente se sobressaindo e uma fotografia condizente com o estilo psicológico da trama. Mas o enredo fraco, uma espécie de prelúdio dos acontecimentos de O Silêncio… faz desse filme inferior, mas ainda assim o melhor de todas as sequências. Por fim, Hannibal: a origem do mal (2007) traz ninguém menos que o próprio Thomas Harris assinando o roteiro sobre a infância e juventude do “filho” Lecter. As tentativas de arrancar mais dinheiro da franquia sustentada pelo pilar único de 1991, a pérfida insistência dos hollywoodiana em explicar tudo, a aventura de Harris nos scripts e a total ausência dos talentos presentes nas demais produções resultaram em um filme pavoroso, que não deve ser assistido nem por curiosidade e merece ser esquecido pelos fãs do canibal.
Em resumo, depois de O Silêncio dos Inocentes, Lecter já teve momentos muito piores que o encontrado na série que reestreia no fim de fevereiro. A série pode perturbar quem jamais deixará de admirar o Hopkins de 1991, mas não deixa de ser uma boa distração para o público que curte um suspense envolvente ao lado de uma boa dose de violência carniceira. Em tempo, a segunda temporada de Hannibal deve chegar no Brasil em 10 de março, pelo AXN.