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O Silêncio dos Inocentes – Canibalismo literário!

Thomas Harris cria atemporalidade social e sexual com O Silêncio dos Inocentes

São raros os casos onde as adaptações literárias são mais famosas que suas obras originais como O Silêncio Dos Inocentes, ainda que o livro possa ser tão impactante quanto qualquer coisa que outras mídias sejam capazes de entregar. Thomas Harris tornou Clarice Starling e Hannibal Lecter em dois ícones extremos sociais (porque não dizer culturais) entre, respectivamente, o dever e o querer, ao mesmo tempo que os coloca como lados diferentes da mesma moeda. E aqui, vamos entender um pouco mais do que este livro é feito e porquê.

Compre clicando na imagemO Silêncio dos Inocentes - Thomas Harris

Como de praxe, à sinopse: Clarice Starling é uma agente em treinamento do FBI que acaba num caso de assassinatos cruéis enquanto precisa entrevistar Hannibal Lecter, um psiquiatra genial que está preso por matar e devorar suas vítimas.

O Silêncio dos Inocentes foi lançado em 2019 pela Editora Record e contém 360 páginas.

Thomas Harris começa bem o livro, lidando não apenas com um assassino em série à solta matando e outro preso manipulando ao seu bel prazer, mas também com temas como assédio, machismo, retaliação e superestimação da protagonista por ser mulher. A trama é complexa, suavemente episódica e se sai bem com algumas digressões pontuais e cenas aflitivamente pesadas e bem detalhadas. O terror realista e a tensão funcionam muito bem e se não são um elemento de jumpscares literários, servem em chocar e trazer à tona a sensação de periculosidade tanto de Buffalo Bill, o assassino que está por aí, quanto de Hannibal Lecter. E isso tudo é apresentado e bem desenvolvido durante apenas metade do conflito da história.

Já sobre a protagonista, Clarice Starling é forte, mas ao mesmo tempo carrega alguns demônios próprios que dão a ela um ar de igual vulnerabilidade. Tendo algumas boas camadas, consegue trabalhar bem as sensações de pró-atividade, estupor, frieza e medo. A inteligência da personagem coopera bastante com o andamento da trama de uma maneira quase sempre realista, com alguns pequenos escorregões. Isso contribui sempre para haver temor pelas possíveis próximas vítimas e um certo flerte com o lirismo nas reflexões da protagonista sobre ser mulher diante de um universo cruel, onde os homens encabeçam as boas e más decisões morais.  Esse vínculo com as vítimas é quase epigráfico e Harris consegue tornar isso em algo tocante. O arco de desenvolvimento de Clarice se tornar inferencial em determinado momento da trama, mas no fundo o autor não sente uma genuína necessidade de fazê-la se provar para o público. E isso faz parte proposital do conceito da Agente Clarice.

Do outro lado há Hannibal Lecter que é, de longe, o melhor personagem do livro. Apesar de aparecer de forma pontual, mas muito bem trabalhada, é um alguém que você sente o peso intimatório, seja pela inteligência acima do comum, seja pelo perigo que representa pela forma que age e até mesmo pela maneira cuidadosa dos coadjuvantes em torno dele. Ele é interessante, fascinante, um antagonista intenso e que deixa o leitor em alerta porque a qualquer momento pode acontecer alguma coisa, como o livro deixa claro desde o começo, quando conta o que ele fez com uma enfermeira do Hospital para Criminosos com Transtornos Mentais.

Interessante notar que tanto Clarice quanto Lecter são profissionais de saúde mental, mas ambos não gostam de falar de si mesmos. Há um bom paralelo aí que, por mais que sejam motivações diferentes, os aproximam aos olhos do leitor e isso os deixa muito relacionáveis. Não fique surpreso se você se ver torcendo por Lecter, por exemplo, e ver até onde ele pode chegar se escapar da prisão.

A história em torno dos assassinatos também é bem construída, com motivações complexas e temas sensíveis como LGBTfobia, transexualidade, misoginia e inveja. O assassino acaba se tornando caricatural em alguns momentos, mas é um bom contraponto ao desespero do FBI em prendê-lo. Ele é uma ameaça real e a escrita de Thomas Harris coopera imensamente – positivamente – para a instabilidade criada em torno do antagonista. Não é apenas chocante, mas também assustador. Mesmo com certos exageros, ele é um personagem agoniante.

O Silêncio dos Inocentes - Thomas Harris

Thomas Harris

Intenso, mas com imperfeições

Apesar da narrativa trazer, no geral, esses ótimos momentos e bem cadenciados, na transição entre Conflito e Clímax a história é alongada um pouco mais do que o necessário. Alguns capítulos que não contribuem para o desenvolvimento ou que foram escritos para reforçar as sensações de perigo ou de pesar de forma mais inócua. Essas sub-tramas, se não atrapalham, não servem para muito mais do que reforçar o que já sabíamos e perdem um pouco do impacto que eventos posteriores poderiam ter. Isso já havia sido feito durante a obra e ter que ser expositivo como forma de desviar a atenção das tensões criou gordura numa história que estava trabalhando bem sem desvios narrativos. Nesses momentos, existe uma pequena tentativa de emular um pouco a  incrível obra O Colecionador (que o próprio Harris usou de inspiração para O Silêncio Dos Inocentes) que até diverte, mas quem já leu isso antes no livro de John Fowles teve uma experiência mais completa e melhor.

O Clímax sofre de intervenções desnecessárias de Harris. Seja no plot twist para alguém encontrar o vilão, seja como o embate se desenvolve. Por mais que estes trechos carreguem em tensão, perdem em realismo e exigem uma subversão de descrença que em alguns momentos não funciona. A leitura se arrasta e algumas percepções mágicas da Agente Clarice Starling podem incomodar.

Mas o pior erro é a escolha da Editora Record em começar pelo segundo livro da franquia e não pelo primeiro da série, que seria O Dragão Vermelho. O Silêncio dos Inocentes entrega em diversos trechos, e com todas as letras, o que houve com Will Graham, o protagonista da primeira obra. Para contextualizar, O Dragão Vermelho foi publicado em 1981 enquanto O Silêncio dos Inocentes, em 1988. Então, se você for ler este livro, tenha consciência de que haverá spoilers fortes do desfecho da primeira obra.

Para terminar, é importante citar o texto de apresentação do escritor Raphael Montes que é fraquíssimo e não condiz com a grandiosidade da obra, chegando à beira do desnecessário, quase juvenil. Há um segundo prefácio escrito pelo próprio Thomas Harris que se encaixa melhor e que consegue ser uma ótima introdução ao mesmo tempo que explica parte da sua inspiração para Hannibal Lecter. A diferença textual é gritante e é um bom exemplo da complexidade da obra sob a ótica do autor em detrimento do que qualquer pensamento raso de terceiros.

Isto posto, O Silêncio dos Inocentes é uma obra de suspense provocativo, detalhista e complexo, chegando até mesmo a flertar com o gore e sem medo de chocar. Se excede aqui e ali, sofre pontualmente por Thomas Harris cair na tentação de manipular os acontecimentos de forma mais evidente. Peca também por uma edição brasileira um tanto presunçosa de cronologia profundamente questionável, ainda que preencha a necessidade dos leitores de uma nova edição de O Silêncio Dos Inocentes. Está longe de ser uma leitura definitiva sobre a mente de um assassino serial ou da sagacidade de um agente da lei, mas entretém, marca e, ao mesmo tempo, traz um bom tanto de reflexão. E no fim das contas, isto deve bastar aos amantes do gênero.

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