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Um Pedaço de Madeira e Aço – Se meu banco falasse!

Um Pedaço de Madeira e Aço, tal qual seu “protagonista”, é muito mais do que aparenta

Uma das ações mais naturais dos seres humanos é a antropomorfização. Sem entrar em freudianismos avançados e desnecessários, o fazemos por um motivo simples: a persona que projetamos sobre um objeto inanimado diz muito mais sobre nós mesmos do que conseguimos admitir. Vale qualquer coisa; no caso deste colunista, corretamente educado na escola de esquizofrenia de B.B. King, todos os seus instrumentos musicais têm nome e personalidade distinta. Mas o que seria capaz de expressar um objeto que não pertence a um único indivíduo? Um objeto público? Isto é Um Pedaço de Madeira e Aço, do quadrinista francês Christophe Chabouté (de Moby Dick).

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Lançado por aqui pela editora Pipoca e Nanquim, Chabouté se baseia em um conceito arriscado, tornado popular por Larry David e Jerry Seinfeld: uma narrativa sobre nada. Embora não possua o humor escrachado da sitcom dos citados acima, Um Pedaço de Madeira e Aço parte do mesmo princípio – situações cotidianas, muitas vezes, oferecem material para reflexões mais aprofundadas do que narrativas grandiloquentes e mais pretensiosas. Mesmo sendo observadores externos, a alteridade com personagens que nos oferecem tais reflexões se torna mais fácil de ocorrer na medida em que nossa identificação com eles é maior. E, de muitas formas – todas simples e singelas – o autor cria aqui um tipo de “subversão” narrativa, e que é o verdadeiro charme da HQ: ela não protagonistas, no plural. Possui apenas um. Um banco de praça.

Porque todas as situações vividas pelos personagens que transitam pelas páginas tem seus significados particulares, construídos de forma contínua e ininterrupta – orgânica, talvez seja melhor dizer, como toda forma de vida o é. Entretanto, para que possamos testemunhar essas inúmeras vidas florescendo, morrendo e se transformando, precisamos de um ponto passivo, um nexo causal que costure todo esse fractal de tramas em um ponto comum. De uma simplicidade elegante, Chabouté posiciona o banco como nosso nexo. Mas, antes de um nexo distante, objetivo e frio, o autor faz questão de estabelecer o objeto como algo importante para que as pequenas e muitas tramas possam se desenrolar. E é aqui que a mágica acontece.

Todas as situações que ali se desenvolvem possuem, como dissemos, algum significado – positivo, negativo ou uma agridoce mistura de ambos. Mas todas elas acontecem de forma intercalada, seja por usuários assíduos do banco, que mantém os mesmos hábitos todos os dias, ou pelos casuais, cuja relação com o objeto lhe dá um toque de frugalidade que não nos permite esquecer que estamos ancorados à ele, à revelia de nossa vontade. Fato é que nós não temos muito tempo para nos envolver com uma história antes que a próxima comece – o que nos mantém presos na narrativa é o banco. E, aos poucos, o amigo leitor perceberá um sentimento magnífico surgir: empatia por um objeto inanimado.

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Não é apenas um objeto

Pois, em um determinado ponto, o banco em si acaba se tornando receptáculo e guardião de todas as histórias que em volta dele ocorrem, mantendo não apenas um fio condutor narrativo, mas efetivamente um objeto com o qual – de alguma forma – nos identificamos. E sempre existe algo de inefável quando antropomorfizamos um objeto. E dizemos isso também para não subestimar aquilo de dissemos no primeiro parágrafo: quando temos tal atitude diante de um objeto inanimado, o objeto em si pode não ser nada, mas o sentimento é muito real. Às vezes, perder ou amar algo com profundo significado pode ser mais intenso do que perder ou amar alguém. Um Pedaço de Madeira e Aço é uma pequena pérola talvez não exatamente pela sua execução, mas pela sua natureza humana, demasiada banco.

Muito pode se dizer sobre a execução técnica da HQ. O domínio do autor sobre o branco e preto é imenso. Os traços residem num limiar delicado, mas aconchegante, entre o preciso-preciosista e o mais solto e emocional. Existem sim, como muitos apontam, grandes influências de nomes marcantes do cinema mudo e alguma coisa de nouvelle vague – o sujeito é francês, afinal de contas. Talvez alguns leitores mais recentes de HQ também possam relacionar o conceito de HQ muda com os trabalhos recém-publicados de Gervasio Troche. Mas é impressionante o quanto isso não é importante diante do que realmente importa em Um Pedaço de Madeira e Aço. E esse algo importante somos nós, os leitores, e a maneira como nos relacionamos com esse inusitado protagonista e as histórias por ele vivenciadas – muito por como nos vemos presos, fincados ao chão, em meio ao emaranhado das vidas ao nosso redor.

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É curioso, e muito emotivo, a maneira como Chabouté cria esse envolvimento emocional com um objeto, porque omitimos até aqui algo importante sobre a história: o banco também seu próprio arco. Minúsculo, composto de meia dúzia de páginas (de uma HQ de quase 350 totais), mas, ainda assim, comoventemente potente. Pois – e não deixa de ser uma metáfora para a HQ em si – de início, ele é apenas um objeto de usufruto. Termina como algo importante para o amigo leitor. A temporalidade, aqui, não deixa de ser um personagem em si. Talvez porque, no fim, ele seja um pouco de todos, pois carrega, em si, as histórias das pessoas dali – que somos todos nós. Um símbolo discreto e singelo da transitoriedade da vida, e da deliciosa contradição existencial entre a frugalidade e a preciosidade única das nossas narrativas particulares.

É um assento pra bunda. É o símbolo de um amor perdido. É um trambolho no meio do caminho. É onde surgiu uma vida. É onde se gruda o chiclete mascado. É o momento mais triste da vida. É onde limpou o sapato cheio de bosta. É a fortaleza onde se esconde da tempestade.

É apenas você. É apenas um pedaço de madeira e aço.

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