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Druuna – Ou: Uma reflexão sobre a natureza da arte!

Druuna é uma bela obra de arte no sentido estético; mas é seu conteúdo ainda aceitável?

Pornografia é arte? Esse é um limite perigoso – no mínimo, capcioso. Quando escrevi no Formiga minhas considerações sobre Garras de Anjo, da dupla Jodorowsky/Moebius, disse o seguinte: “Existe uma profunda resistência, da parte de críticos e resenhistas, em admitir que, sim, trata-se de uma obra de arte pornográfica, já que eles mesmos estariam, de uma certa forma, envolvendo-se publicamente com a obscenidade, a indecência e a imoralidade que, em suas opiniões, seriam inerentes ao tema. É difícil para a maior parte das pessoas, em qualquer parte do mundo, admitir que pornografia pode ser arte e – pior – arte que pode interessá-las de alguma forma. Então, para aliviar esse falso limiar ético, os críticos e resenhistas assimilaram e disseminaram a ideia de que se trata de ´erotismo´ e não pornografia.” Por que resgato minhas próprias palavras? Porque novamente me vejo diante dos mesmos cismas quando me proponho a falar sobre Druuna, de Paolo Serpieri.

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O autor Paolo Serpieri!

A pergunta que abre o primeiro parágrafo, por si só, já é um interminável pano pra manga. Exatamente por isso, perguntar se pornografia é arte envolve determinarmos primeiro o que é arte – uma tarefa hercúlea e ingrata. E também desnecessária dentro desse contexto. Intuitivamente, podemos assumir, dadas as suas características, que Druuna é sim uma peça artística. De enorme qualidade e envergadura técnica, diga-se de passagem. Como colocaremos a seguir, a HQ pode não ser exatamente um primor narrativo, mas artisticamente é uma verdadeira aula; imensos storyboards em forma de uma ficção científica, cujas artes de Serpieri mesmo os estudantes mais esmerados de desenho têm dificuldade de emular.

Existe sim, uma obviedade relacionada ao tópico da pornografia. Trata-se de um conceito que está, hoje mais do que nunca, diretamente associado a um nicho de mercado e uma certa prática que é, para além de uma natural moralidade reprovável, dentro de uma sociedade herdeira do puritanismo judaico-cristão como a nossa, também diretamente ligada a uma objetificação rasteira, que torna o corpo uma mercadoria. As principais vítimas disso são bastante conhecidas – mulheres e, ainda mais abominavelmente, crianças. Então, como defender a ideia de pornografia? Como aceitar que Druuna é sim um objeto de arte, e não uma peça que apenas pratica a mesma objetificação e mercantilização do corpo feminino, apenas de maneira mais sofisticada e glamourizada?

Vamos assumir, para efeitos de argumentação, que a HQ de Serpieri é sim, uma forma de arte sofisticada – apenas um aceno aos seus detratores, pois nossa posição oficial é absolutamente afirmativa. Mas por que ainda temos resistência em lidar com essa ideia? Chegaremos lá. Para entender melhor o impacto que Druuna provoca, é preciso primeiro entender o que a HQ é. E o que ela é trata-se da herança de algumas das melhores linhagens dos quadrinhos. Mas antes, alguns avisos:

Aviso 1 – Este texto contém temas e imagens fortes relacionadas a gatilhos de estupro e violência sexual

Aviso 2 – Este artigo contém imagens pornográficas inapropriadas para menores

Aviso 3 – Este artigo contém spoilers

Entre os quadros e os quadrinhos

Paolo Eleuteri Serpieri nunca foi alguém com medo de se arriscar ou se expor. Desde cedo, sua veia artística se sobrepunha à outras qualidades – a parcimônia inclusa. Veneziano nascido um ano antes do término da Segunda Guerra, Serpieri passou a maior parte de sua vida em Roma, onde, sendo um apreciador das belas artes, foi profundamente influenciado pelos inúmeros e apoteóticos movimentos artísticos italianos – incluindo o Renascimento e o Barroco. Imerso na beleza da Cidade Eterna, o artista estudou arquitetura e pintura na Accademia di Belle Arti di Roma, onde chegou a ser tutelado por Renato Gattuso, grande expoente do neorrealismo italiano.

Formado, tentou buscar carreira nas artes plásticas – pintura principalmente – chegando a obter algum reconhecimento. Entretanto, havia uma dissonância entre a arte de Serpieri e o momento vivido pelas artes plásticas na Europa: Serpieri, como dito, era um apreciador das belas artes, das formas perfeitas, das cores vívidas; enquanto as artes plásticas, sempre vanguardistas, relegavam antigos modelos e buscavam o novo. O autor entendeu que sua carreira naquele universo teria pouca duração, ou teria atenção restrita, ou ambos.

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Renato Gattuso, uma das grandes referências de Serpieri.

Curiosamente, longe dali, havia um efervescente ambiente onde desenhistas do seu calibre eram mais do que apreciados, e sua qualidade inerentemente marginal chamava a atenção de um explorador das formas humanas como é Serpieri: os quadrinhos. Tendo flertado com o expressionismo, chamava a atenção do autor as formas exageradas e o teor quase sempre bombástico dos estilos quadrinísticos. Quando passa a se dedicar ao figurativismo, encontra na narrativa gráfica dos quadrinhos uma oportunidade de desenvolver suas formas dentro de um sentido – coisa que jamais poderia fazer nas artes plásticas.

Porém, é necessário ressaltar que, apesar de nascido em uma das grandes escolas de quadrinhos do mundo, Serpieri só se aproximou da Nona Arte por conta de um timing muito específico: a partir da metade dos anos 1960, a Itália, como o resto da Europa, passa a receber profunda influência da contracultura americana. A grande revolução underground das HQ´s iniciada por Crumb e Kurtzman estendia seus braços pelo Ocidente, e os rebentos destes na Bota acabam se tornando os predecessores que influenciariam o trabalho de Serpieri.

Isso inclui desde os fumetto neri das irmãs Giussani, passando pela linha de produção industrial da Bonelli, até quadrinhos autorais de gente de calibre, como o ítalo-argentino Hugo Pratt. Falando sobre esse último, é curioso notar que, quando decide se aventurar nos quadrinhos a partir de 1975, lançando junto com Raffaele Ambrosio séries de histórias de western – a eterna obsessão italiana – Serpieri é publicado pela primeira vez nas revistas LancioStory e, em 77, também na Skorpio. Ambas eram conhecidas na Itália por publicar quadrinhos de grandes artistas sul-americanos – notadamente argentinos. Isso fez com que muitas pessoas associassem a arte do italiano com o estilo de nomes como Solano Lopez.

Entretanto, os westerns eram apenas o aquecimento. Serpieri tinha outros interesses.

Donne italiane

Mais importante e diretamente relevante para o caso de Serpieri, esse período que o precede também representou o auge dos quadrinhos adultos na Itália, onde se proliferaram diversos títulos qasi-eróticos, eróticos ou mesmo pornográficos. A lista é imensa, e inclui velhas conhecidas dos italianos como Zora la Vampira, Maghella, Biancaneve, Vartan, Jacula, Jolanda de Almaviva, Yra, Sukia e, mais notavelmente, Lucifera, que monopolizou a imaginação masculina italiana da mesma forma que sua editora, a Ediperiodici, monopolizou o mercado. Todas protagonistas mulheres, independentes, sexualmente desinibidas e essencialmente malignas. Isso não é mera coincidência.

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Lucifera foi um sucesso de vendas na década de 1970.

Como diz Simone Castaldi no livro Drawn and Dangerous, essas anti-heroínas dos neri e vietati representavam, para o público masculino italiano, uma maneira de exorcizar o medo da emancipação feminina durante o boom econômico vivido no país após a década de 60. A sociedade patriarcal italiana estava lentamente redefinindo suas hierarquias – uma transformação para a qual o homem italiano não estava equipado. Entender essa relação do homem italiano com o símbolo feminino nas HQ´s é extremamente importante para entender a apresentação da visão de Serpieri dessa relação em Druuna.

Entretanto, é necessário também observar que havia um meio termo na Itália entre HQ´s mais cerebrais como as de Pratt, e a diversão pervertida e descerebrada de Lucifera. Guido Crepax, ao desenvolver sua Valentina, demonstrou que o erotismo são precisa ser algo esvaziado de sentindo; que a objetificação do corpo feminino podia oferecer um fio condutor narrativo. Isso é particularmente importante, visto que o foco desse artigo é a Druuna de Serpieri. Criada em 1965 e apresentada no grande expoente dos quadrinhos alternativos italianos, a revista Linus, Valentina foi uma personagem pop desenvolvida em inúmeras nuances por Crepax, apresentando super-heróis, agentes secretos, feiticeiros, etc. Uma elegante saga de tons freudianos, a narrativa de Crepax fluía entre o real e o onírico; onde o erotismo era uma metáfora em si. A ideia de uma narrativa erótica de nuances mais profundas e obviamente impactante no trabalho de Serpieri, e o autor italiano sempre se referiu à obra de seu colega com grande deferência.

Não obstante, o trabalho de Crepax foi influenciado por outra personagem importante das HQ´s sci-fi, que também exerceu influência – em alguma medida – sobre a Druuna de Serpieri, e que é a ponte para outra grande linhagem dos quadrinhos que serve de fundamento para o trabalho do artista veneziano. Barbarella, de Jean-Claude Forest, apresentada em 1962, foi uma das primeiras grandes protagonistas femininas de uma HQ de ficção científica de teor adulto – senão a primeira. E sua posição como ícone do feminismo e da contracultura exerce um contraponto interessante com Druuna, a qual influenciou. Mas retornaremos a isso depois.

O que é mais importante nesse momento é entender que, na França, Barbarella e Forest, assim como alguns outros autores e artistas – destacadamente Moebius e Druillet – foram responsáveis pela retomada da ficção científica nas HQ´s, elevando-as de patamar e chamando a atenção do grande público para esse gênero. A menção aos dois e à revista que fundaram, a lendária Métal Hurlant, é particularmente relevante por dois motivos: primeiro, como dito acima, Serpieri é publicado pela primeira vez nos quadrinhos em 1975, mesmo ano de lançamento da primeira edição da magazine francesa. A transição do interesse de Serpieri pelos westerns para o sci-fi não foi totalmente aleatória, e tem muito a ver sim com a influência da retomada francesa do sci-fi sobre o artista italiano.

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A Barbarella de Forest foi uma das precursoras de Druuna.

Incidentalmente, isso nos leva ao segundo motivo: dez anos depois da sua estreia como quadrinista, Serpieri deixa de lado seus queridos westerns para começar uma empreitada em território desconhecido, ma non troppo – e, justamente, em uma das versões da Hurlant, a Heavy Metal: Druuna.

Mas por quê outra mudança tão repentina de rumo e interesse? Como dissemos, Druuna começou a ser publicado em 1985, pela Dargaud, para depois chegar na HM. Na década que se passou entre a fundação da Hurlant, o mundo mudou; mudou ainda mais em relação à década de Barbarella e Valentina. Serpieri vive dizendo em entrevistas que criou Druuna para desafiar a “moralidade judaico-cristã ocidental”. Convenhamos: em 85, isso já era chutar cachorro morto. Havia atrás dele um sem-número de artistas que fizeram isso de todas as formas possíveis, desde o duo citado no primeiro parágrafo do artigo, até seus conterrâneos/predecessores, como Manara e Crepax. Ironicamente, mesmo o autor admite em determinados momentos, como na entrevista para o Actua BD, em 2003, que Druuna é uma paródia de ficção científica, um pretexto para a pornografia explícita.

Talvez um excesso de sinceridade; mas também, talvez, uma certa falta de paciência – italianos… – para explanar sobre certas nuances, voluntárias ou involuntárias, da sua obra. Entretanto, como a opinião do autor sobre sua obra não tão importante quanto as interpretações que ela permite, nos foquemos neste último aspecto. A relevância da pornografia da obra não reside exatamente no que ela apresenta, mas em como ela apresenta. Afinal, do que se trata Druuna?

A Mulher Ideal

A sinopse é relativamente longa; afinal, estamos falando de 10 volumes, publicados ao longo de 33 anos: Morbus gravis (1985), Druuna (1987), Creatura (1990), Carnivora (1992), Mandragora (1995), Aphrodisia (1997), The Forgotten Planet (2000), Clone (2003), Anima —  Tomo 0: Les origines (2016) e Venuta dal Vento (2018). Como o foco de Serpieri nunca foi exatamente a narrativa, durante os treze anos de publicação das aventuras de Druuna, a trama se desdobra em inúmeras fases, pontuadas, em diversas ocasiões, com grandes saltos temporais do enredo – o que, como é apontado por muitos, não poucas vezes gera inconsistências e incoerências internas. De toda forma, em cada volume, o autor está mais interessado em expor sua protagonista a determinadas situações, que revelarão aspectos de sua persona e seus significados, do que em desenvolver uma história propriamente dita.

Nos primeiros volumes da série, o enredo se desenvolve em um lugar chamado apenas de “A Cidade” – um ambiente urbano genérico, cuja degradação é deliberada e explicitamente exacerbada pelo autor. O que sobrou da sociedade é violenta e decadente, onde o conhecimento é hostilizado e o poder é exercido por burocratas-militares, em associação com uma instituição religiosa inquestionável que afirma deter o controle sobre a “Verdade” – o último fiapo de inteligência que se acredita haver nesse mundo. Ou seja, o be-á-bá no manual das distopias contemporâneas.

Embora nunca explicitado pelo autor, pois o contexto é mais importante do que a informação aqui, o período em questão na narrativa é conhecido como “Era dos Homens”, e acredita-se que seja consequência, claro, de uma grande guerra de escala apocalíptica. De toda forma, isso é história, e a população local tem preocupações mais imediatas. Notavelmente, uma doença altamente infecciosa conhecida apenas como “Mal”, que se espalhou transformando todos ao seu alcance em mutantes amorfos tentaculares – aquela dose básica de Lovecraft para piorar o que já é assustador. Como medida preventiva, os habitantes são obrigados a tomar um soro, que é distribuído periodicamente em lugares que parecem ter saído da mente doentia de um frequentador do SUS.

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A perfeição dos traços de Druuna contrastam com o ambiente degradado ao seu redor.

Muitos acreditam que aqueles permanentemente saudáveis serão mandados para os níveis superiores da Cidade – um lugar inacessível para a grande maioria, mas onde os selecionados vivem uma vida sem qualquer tipo de necessidade ou privação. Na outra ponta do espectro, aqueles contaminados pela doença são mandados para os níveis inferiores. Afinal, que tipo de distopia estaria completa sem uma sociedade de castas e sua hierarquia, certo? Desnecessário dizer que Serpieri, esse velho sádico, estabelece sua protagonista e seu consorte, Shastar, neste último local.

É necessário fazer aqui nossa primeira inserção contextual. Pois, apesar de eventualmente abrir mão de se aprofundar no conceito de sua obra, é um fato conhecido que o autor baseou sua doença imaginária em algo terrivelmente real: Morbus Gravis foi uma feroz reação de Serpieri à epidemia de AIDS que explodiu nos anos 1980. Alguns de seus amigos pessoais morreram por consequências relacionadas à doença, o que ele via como uma ameaça aos impulsos naturais humanos, que tornavam o próprio ato sexual uma possível sentença de morte. O verão do amor não havia apenas acabado; era agora uma memória distante, obscurecida pelo inverno de uma realidade literalmente doentia.

Essa visão lúgubre foi destilada através dos primeiros volumes, afogados em um pessimismo soturno, muito distante do ímpeto vanguardista de Forest ou do esoterismo de Moebius, e mais próximo do zeitgeist de um mundo cansado da Guerra Fria e agora assolado por uma doença incompreensível e imparável. O fato de os infectados de Druuna serem escorraçados pela população saudável, e a imagem de uma espécie condenada – aparentemente – por suas próprias ações, é uma metáfora tão poderosa que se sobressai até mesmo sobre a pornografia explícita que desfila pelas páginas. Ou, talvez, exatamente por causa dela.

Adiante, a saga de Druuna entra em loops, que, no geral, representam uma mesma visão de Serpieri sobre a natureza humana, onde a beleza perfeita e passiva de Druuna se opõe aos avanços tecno-orgânicos oriundos de ações eminentemente masculinas – todos os coadjuvantes a sua volta. Se descobre que os restos da humanidade foram deixados à deriva em busca de um novo lar em uma enorme nave espacial, vivendo apenas para perpetuar a existência do “mestre” – um homem chamado Lewis, que também foi o primeiro comandante dessa nave. Entretanto, Lewis há muito enfrenta um problema: o computador da nave, Delta, tomou o controle de tudo e não permite que Lewis morra.

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Nos dois primeiros quadros, Lewis já assimilado por Delta.

Este tenta convencer Druuna a destruir o computador, apenas para que ela descubra que, na verdade, os dois se “fundiram” em uma única entidade, e a destruição de qualquer um representaria também a destruição da Cidade. Após ser “salva” por Druuna, com o passar do tempo, a Cidade acaba se transformando em um imenso nódulo amorfo de matéria orgânica. Em seguida, Druuna é resgatada por uma equipe composta por mais homens; e, inevitavelmente, a doença que existia na Cidade passa a persegui-los na nave de resgate. E daí em diante, os tais loops narrativos se repetem em diferentes variações, sempre com Druuna representando uma natureza abusada e explorada por uma humanidade deformada pela tecnologia amoral.

No geral, existe uma transição do primeiro volume, Morbus Gravis, para os subsequentes: passada a histeria provocada pela disseminação da AIDS, Serpieri usa o tropo estabelecido na figura de Druuna, enquanto uma natureza sempre abusada, mas nunca corrompida, para estabelecer uma metáfora visual pornográfica da relação da humanidade com a natureza – “humanidade” aqui com “h” minúsculo, já que representa apenas metade dela. A metade patriarcal, historicamente no controle, que sempre praticou um determinado tipo de ideologia de dominação e exploração.

De muitas formas, há uma sensibilidade irônica na escolha da pornografia do autor. Conscientemente ou não, ele acaba por desenvolver, dentro de uma narrativa sexual explícita, uma espécie de crítica ecofeminista, onde a pornografia acaba servindo para explicitar a brutalidade do abuso da humanidade sobre a natureza, usando como metáfora os constantes abusos do homem sobre a mulher.

Fantasias de poder

Como diz o filósofo ético Peter Singer em seu livro Ética Prática, o ato sexual em si não significa absolutamente nada – muito menos para quem não está participando dele. Tudo o que nós entendemos, promulgamos e julgamos em relação ao sexo são construções sociais, culturais e históricas. O uso da pornografia pelo mundo contemporâneo se encaixa nesse contexto. Pense em qualquer ato pornográfico que você já tenha visto (somos todos adultos aqui). São os elementos da representação pornográfica que realmente estimulam ou desestimulam o espectador – a diferença entre um filme estrelado pela Sasha Grey e aquela vez em que você pegou seus pais na cama (sinto muito por te lembrar disso).

No geral, fazer alguma coisa parecer estimulante não é tão fácil. O fato é que Serpieri gosta do tipo de desenho que pratica, e porque ele gosta, ele se tornou realmente muito bom nisso. Suas representações eróticas são extremamente estimulantes, pois residem num limiar delicado entre o realismo das formas e o absurdo do contexto, fazendo com que, mesmo que a saga Druuna não seja um primor narrativo, o leitor seja dragado por outros estímulos para dentro daquele universo. O sexo apresentado por Serpieri é envolvente – até a página dois. Pois, em algum momento, o fiapo de trama vem à tona. E o incômodo começa.

A maior parte do sexo em Druuna não é consensual. E não, não há como dourar a pílula. São 10 volumes de páginas e mais páginas de estupro. Dada a habilidade de Serpieri em desenhar formas ideais e criar ambientações envolventes – principalmente para o fã de ficção científica, normalmente deixamos isso passar. Mas em algum momento, a pornografia perde seu impacto inicial, e algumas características começam a se sobressaltar – e não é por falta de esforço do autor de tentar impedir isso. Uma das razões pelas quais dizemos que a narrativa de Druuna é, no mínimo, um tanto abstrata, é porque existe pouquíssimo texto adornando os belos quadros, mesmo da protagonista; ou seja, uma maneira de apreciar o corpo feminino ser ter que interagir com a mulher em si. Entende para onde isso vai?

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Serpieri cria imagens grotescas de violência sexual.

Trata-se menos de uma incapacidade como escritor de Serpieri, e mais um reforço da ilusão platônica provocada pelas formas apolíneas da protagonista em meio à ambientes dionisíacos. Entretanto, evocando aqui um certo sarcasmo filosófico, era exatamente Platão quem condenava a arte por ser uma imitação da realidade, e que deveríamos buscar essa última. O problema em Druuna é que a realidade é bastante controversa. Claro – internamente, poderíamos apontar o fato de que a história se passa em um futuro pós-apocalíptico distópico, onde uma das manifestações do colapso da civilização é a emersão de instintos naturais brutais, como a satisfação da libido masculina forçada sobre as mulheres. Não é sem precedentes, nem absolutamente irreal, pelo contrário.

Mas a pergunta é: é realmente necessário representar tais atos de uma maneira glamourizada – quase apolínea, como dissemos? Afinal, se sua intenção, como ele diz ser, ao criar o universo de Druuna era fazer uma crítica ao medo provocado pela AIDS e pelo sexo em si nos anos 1980, ele faz um trabalho bem merda nesse sentido, ao estimular o leitor de todas as formas possíveis e imagináveis. O ponto é: todas as “críticas” e contexto que o autor clama para sua obra, como a questão da AIDS e da hipocrisia judaico-cristã seriam absolutamente consistentes. Se não houvesse tanto estupro para relativizarmos a obra.

Como aponta R.M. Rhodes, uma das representações mais perturbadoras da pornografia de Serpieri é reservada para uma personagem coadjuvante, Hale. Pouco depois de aparecer pela primeira vez, ao encontrar Druuna e um grupo de soldados em terras ermas, o pai de Hale é assassinado e ela é imediatamente estuprada por um soldado que toma posse dela. Uma das coisas mais perturbadoras desse painel é a representação de Druuna e dos outros soldados esperando passivamente enquanto um “NÃO” clamoroso é gritado fora de cena, apenas para ser ignorado. Não satisfeito, Serpieri apresenta o estupro graficamente nas páginas seguintes, apenas para encerrar o processo com uma imagem perturbadora de Hale recolhendo a si mesma pós-trauma.

Dentro do contexto narrativo, faz todo sentido – e, graficamente, é um primor na condução do olhar do leitor para a progressão da ação. É um lembrete brutal do tipo de mundo que estamos vendo: essa ação abominável ainda é um destino melhor do que ser tomada pelo “Mal”. Entretanto, para o público-alvo da HM – jovens do sexo masculino – essas imagens de estupro têm significados mais profundos para o contexto social, histórico e cultural que vivemos em relação às mulheres. Mesmo que essas cenas tenham uma função narrativa – mais o evento do que o ato em si, para sermos honestos – é difícil acreditar que o que fica é a mensagem subjacente, e não a pornografia explícita.

E, embora não seja muito conhecida do público brasileiro, a personagem faz enorme sucesso na Europa, onde ganhou não apenas inúmeras reimpressões, como até mesmo edições contendo – claro – apenas sketches de nudez pornográfica. Mesmo que o choque provocado por Serpieri tenha feito até mesmo a HM adotar uma política de auto-censura – louvável até certo ponto – a arte do italiano era um dos carros-chefes de venda da magazine. E, sendo um dos bastiões dos quadrinhos alternativos quando do seu surgimento, um oásis de liberdade criativa, o fato de a HM estabelecer uma auto-censura por conta da obra de Serpieri (e, sejamos justo, de alguns outros também) diz muito sobre certos limites cruzados pelo autor.

Novamente, Rhodes aponta uma outra circunstância emblemática: no terceiro volume, Creatura, há uma cena em que Druuna é drogada e estuprada coletivamente. O problema é que o contexto do estupro não é absolutamente claro – se fosse apenas a imagem em si, seria somente mais uma das espetaculares composições visuais pornográficas do autor, com curvas e traços beirando a perfeição, e uma colorização de encher os olhos. Entretanto, após o ato, há a fala de Druuna: “Me perdoem, talvez nós pudéssemos viver juntos. Seus diabinhos me deram muito prazer, sabe? Não sei o quanto das drogas foi responsável por isso… Mas posso assegurar que foi uma experiência maravilhosa”. (Tradução do editor).

Percebam que, nesse caso, o problema não é exatamente a representação da cena em si; é o contexto que torna todo o ato absolutamente desprezível e, quando se percebe o prazer evocado por ela em relação ao contexto dado pela fala no final dele, vem a náusea. Pois existem poucas coisas tão perigosas quanto relativizar um estupro baseado na ideia de que a vítima teve algum prazer nisso; um delírio claramente masculino, e que pode ter consequências severas se sua audiência for uma mente já não muito estável. Não basta dizer “eu, como leitor, jamais faria algo assim”. Nesses momentos, é necessário abandonar essa mentalidade pequena-burguesa de “cada um por si” e entender que a arte, pode sim, ter resultados muito graves.

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O skecthbooks são a prova do sucesso de Druuna – como imagem, não como conteúdo.

Neste ponto, o amigo leitor deve estar se questionando se continuar publicando Druuna hoje é viável, ou mesmo moralmente aceitável. Sobre isso, há que se relembrar algumas coisas que já foram ditas: a obra possui sim, um contexto narrativo. E esse contexto apresenta aspectos da nossa organização e existência como espécie que não são de forma algumas agradáveis. E se considerarmos que um dos muito papéis da arte não é apenas apresentar o que é belo e nos provoca deleite, mas também provocar e explicitar o que rejeitamos e o que nos incomoda, Druuna reside num limiar, no mínimo, digno de atenção. Para além dos peitos, além do sexo – altamente e naturalmente estimulantes, principalmente estando dentro de padrões de beleza universalmente disseminados – existem proposições estupidamente contundentes, oriundas de um mundo que enlouqueceu e decaiu.

De muitas formas, a eterna sombra da violência, sexual ou não, serve como uma espécie de alerta e lembrança contínuos de como esse mundo é perturbado – e não há como não ser afetado por essa metáfora, afinal, estupros e feminicídio não são ficção, mas algo perturbadoramente real para qualquer um. Todas as formas de opressão, seja o autoritarismo político, religioso, sexual e até mesmo médico, são claramente contrastados pela identificação com a figura orgânica de Druuna – nossa referência nietzscheana humana-mais-que-humana da obra. Se é intencional, o contraste entre o realismo de Serpieri com a alegoria narrativa apresenta questões que são profundas e bastante incômodas. Mas que podem ser resumidas da seguinte forma: o que significam os estupros em Druuna?

Se o amigo leitor ainda estiver disposto, podemos apresentar uma contrapartida da crítica ao trabalho do italiano. Vamos falar sobre ecofeminismo.

Gaia ciência

“Dizemos que a ciência «explica», mas, na realidade, apenas «descreve». Descrevemos hoje melhor, mas explicamos tão pouco quanto todos os nossos predecessores. Descobrimos uma sucessão múltipla onde o homem ingênuo e o investigador das civilizações mais antigas se apercebia apenas de duas coisas: ‘causa’ e ‘efeito’, como se costumava dizer. E deduzimos: isto e isto tem de se dar primeiro para que depois se siga aquilo – mas, com isso, não compreendemos absolutamente nada.” – Nietzsche

O Ocidente é herdeiro das tradições platônica e aristotélica. O que, para todos os efeitos, significa que, ao menos em tese, buscamos um objetivismo absoluto; um distanciamento que nos permite compreender o todo sem sermos “contaminados”, num sentido metodológico, pelo meio ambiente. Assim, nossa compreensão do mundo é sempre dualista, binária, opondo qualidades objetivas e intuitivas, e onde existe uma relação poder de um sobre o outro. Dos dualismos mais comuns, podemos perceber valores que se disseminaram desde o aristotelismo, até mais recentemente com os positivistas – entre eles, mente vs. corpo, civilização vs. natureza, o “eu” vs. o “outro” e, claro, homem vs. mulher.

Após o imenso colapso não apenas físico, mas também moral e sociológico que foi a Segunda Guerra, e com a perigosa ascensão da Era Atômica que denunciava que, não apenas não aprendemos nada com a Guerra como já estávamos no preparando para uma escalada possivelmente terminal de violência, movimentos políticos, sociais e culturais começaram a questionar com maior precisão e veemência as estruturas de poder que perpetuam esse ciclo de violência.

Entre os anos 60 e 70, surge uma nova perspectiva que analisa essas estruturas, dessa vez não através de objetos de estudo isolados, como gêneros, etnias ou o meio-ambiente, mas sim tentando lançar uma luz sobre o todo. O ecofeminismo busca fazer uma importante associação entre a opressão realizada pelo homem branco contra as mulheres e outras etnias e seu comportamento em relação ao meio-ambiente e à natureza.

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Françoise d’Eaubonne, em 1974, cunhou o termo “ecofeminismo”.

Com isso em mente, podemos muito bem fazer um cruzamento de conceitos, de onde extraímos uma reflexão importante sobre Druuna. A socióloga Lori Gruen, em Ecofeminism: Women, Animals, Nature, caracteriza a busca do ecofeminismo como uma luta contra a amoralidade do método científico e suas consequências epistemológicas: “desvalorizando a experiência subjetiva, reduzindo os seres vivos e espontâneos à máquinas a serem estudadas, e estabelecendo um privilégio epistêmico baseado na razão desvinculada, a mentalidade mecanicista / científica (que) distingue firmemente o homem da natureza, da mulher e dos animais.” É uma extensão da argumentação que diversos pensadores éticos pós-Segunda Guerra apontaram com frequência, nos lembrando de que a bomba atômica, por exemplo, nada mais é do que o produto de um vasto conhecimento científico completamente dissociado de uma ética.

Da mesma forma, retomamos uma citação de Serpieri na supracitada entrevista para o Actua BD: “Todo o contraste vem da psicologia de (…) Druuna, o único verdadeiro ser humano da história. (Ela) é usada para descrever o que os seres humanos são: atormentados, de fato, mas que possuem valores. Eles são pessoas, não entidades anônimas, números. Druuna não é uma heroína. Ela é uma mulher, com suas complexidades, uma mulher comum, uma mulher contemporânea. (…) A mulher, psicologicamente, representa o futuro do homem. Mas também é um outro lado da humanidade, tal qual o homem. Isto dito, para mim (a mulher representa) a dimensão carnal, erótica, o símbolo do ímpeto da vida que nos impulsiona. Se eu tivesse que desenhar um homem nas mesmas condições, eu não seria capaz de transmitir esse sentimento”.

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A aproximação de Druuna com a esfera naturalista é uma demonstração latente da visão de Serpieri do feminino como representação da vida e da nutrição.

Unindo essas duas perspectivas, a do próprio autor e a de uma interpretação ecofeminista, podemos extrair disso a ideia de que Druuna não é uma aproximação desse conceito – que naturalmente cria uma rejeição imediata de homens com dificuldades de se desvencilhar das amarras do patriarcado – apesar da pornografia explícita e violenta, mas por causa dela. Por polêmica e controversa que tal afirmação possa parecer, existe uma lógica nesse mundo, que aponta para um dualismo constantemente em confronto, numa representação ficcional científica do tradicional verticalismo de dominação – o “um” que domina “o outro” – onde o abuso sexual é a ferramenta de escolha para oprimir. Não parece uma realidade absurda.

Visto que, tradicionalmente, mulheres são apresentadas de maneira submissa, degradante ou mesmo intimidadora – como mencionamos sobre Lucifera e seus análogos – nos fumetti e nos quadrinhos em geral, não deixa de ser uma estratégia psíquica muito interessante. Pensar que os elementos de horror e pornografia em Drunna servem para questionar como temas ecofeministas funcionam dentro de uma HQ, que presumivelmente será lida por homens brancos que se deleitam em imagens sexualmente violentas, é um ponto central para redimir a pornografia exegética de Serpieri.

Téchne vs. phusis

No caso de Druuna, a metáfora gira em torno de, como diz o pesquisador de quadrinhos Matthew Jones, uma epistemologia masculina – algo que remete mesmo aos primórdios da humanidade. Não raramente, mesmo em mitos antigos, existe uma distinção do masculino e do feminino, que distingue a tecnologia do orgânico, o ativo do passivo, o agressivo do pacífico – existem poucas coisas mais simbólicas nesse sentido do que a entrega forçada de Afrodite, deusa do amor e da beleza, por Zeus para Hefesto, armeiro e ferreiro dos deuses. Tais relações só se agravaram com o passar do tempo, pois a tecnologia evoluiu, mas nossas percepções dessa relação dualista de poder não. Já citamos o positivismo e seu produto mais sombrio, a bomba atômica, mas a misoginia inata produzida por essas relações chega tão longe ao ponto de o homem querer se desvencilhar da sua co-dependência da mulher, tornando-a, em definitivo, um objeto sem função a ser consumido. Como disse Heidegger, “parece que o homem moderno corre de cabeça para este objetivo de se reproduzir tecnologicamente”.

Talvez, não à toa, um dos arcos de Druuna trate justamente de um pedaço da civilização repleto de ciborgues e clones. Além de, no geral, desde o início, Serpieri apontar sua narrativa para os perigos apocalípticos dessa linha de pensamento. O dualismo do autor não é nada sutil. Todo o horror que vemos em Druuna foi produzido pela mão humana; e, visto que a narrativa aponta claramente para a relação de poder onde os homens detém o monopólio da violência, para usar uma expressão hobbesiana, os prováveis responsáveis pela obliteração da raça humana são os homens. De muitas formas, o “Mal” e as representações tecno-orgânicas dos monstros que habitam esse mundo nada mais são do que uma externalização dessa epistemologia masculina pervertida que Jones percebe na obra de Serpieri.

O fato de o autor reafirmar diversas vezes sua protagonista como um símbolo de pureza parece um toque de sadismo sobre sua pornografia explícita, mas, diante desse subtexto ecofeminista oferecido pela ambientação da narrativa nos faz perceber que, na verdade, os contínuos estupros de Druuna têm um significado mais profundo, mais agudo, e que oferecem uma realidade desagradável, com a qual muitos homens, como dito, estão pouco dispostos a lidar. Mais do que uma fantasia de poder, é uma crítica ecofeminista severa à maneira como esse poder perverte, corrompe e extrapola ainda mais a amoralidade inerente à essa epistemologia masculina. O fato de Druuna permanecer essencialmente boa – embora nunca perfeita – em um mundo doente é uma celebração da figura feminina como fundamento de uma existência humana mais ética, mais isonômica e, em última instância, melhor.

Citando o computador despótico e homicida Delta em Morbus Gravis: “A mente feminina é completamente alienígena para mim, por causa de sua natureza humana e orgânica”. E, tão sutil é a perspectiva de Serpieri que, no final de Creatura, quando a mente de Lewis está já completamente fundida com a de Delta, ele incumbe à Druuna libertá-lo de seu sofrimento; ergo, cabe a figura feminina libertar o homem das chagas da tecnocracia autofágica a qual ele se submeteu. Um mundo em que a criatividade tecnológica masculina supera a criatividade física feminina reduz nossa humanidade e o valor da vida. Simples assim.

druuna

A completa deterioração da espécie humana é resultado da epistemologia masculina mencionada por Jones.

Serpieri não desassocia a passividade e a natalidade da figura feminina – ao contrário, reafirma sua necessidade para garantirmos a perpetuação da vida e seu poder de resiliência diante da ruína do mundo provocada pelos homens. E, por este lado, justifica-se – em tese – duas escolhas visuais do autor: a mulher, representada por Druuna, como um símbolo incorruptível e absoluto de beleza; e a violência lançada sobre ela pelos produtos da civilização e de uma mentalidade essencialmente masculina. Dessa forma, a pornografia explícita, mais do que simplesmente um disparate da mente de um homem masturbatório e sádico, possui uma função narrativa essencial para entendermos a crítica subjacente aqui.

Com isso em vista, a pornografia brutal e explícita de Paolo Serpieri é aceitável para a sensibilidade contemporânea?

Diz-me como transas, e te direi quem és

Então, voltamos à grande encruzilhada deste texto, apresentada logo no início deste: 1 –  pornografia pode ser arte?; 2 – e, se sim, Druuna pode ser qualificada como tal?; 3 – e, neste caso, a escolha do tipo de pornografia apresentada pelo autor estaria redimida pelo ensejo na qual é apresentada? As respostas objetivas que este colunista pode oferecer são: 1 – Não sei; 2 – Não faço a menor ideia; 3 – Talvez sim, talvez não, mas o mais provável é “quem sabe?”

Podemos entender seu desapontamento, amigo leitor, mas você deve ser indulgente conosco. Resgato novamente minhas próprias palavras: “É difícil para a maior parte das pessoas, em qualquer parte do mundo, admitir que pornografia pode ser arte e – pior – arte que pode interessá-las de alguma forma.” O problema, aparentemente, não é aqui o que fazer com a definição de arte – como dito no início do artigo, um tópico elusivo e, para todos os efeitos, desnecessário. Porque o cerne do questionamento que ronda Druuna e Serpieri não é o que é feito com a arte, mas o que é feito com o sexo.

Como apontamos na introdução do quarto tópico, Fantasias de Poder, Singer nos aponta o fato de que nada relacionado ao universo sexual humano é, de fato, relacionado ao ato em si, mas sim, a cultura gerada em torno dele. Então, por uma série de razões históricas, culturais e sociais, o sexo se tornou moralmente repreensível publicamente, assim como uma ferramenta de poder e dominação na esfera privada. Dessa forma, toda e qualquer obra de ficção que se utilize do sexo como motor da narrativa – caso de Druuna – necessariamente acaba submetida ao filtro da ética em torno do sexo antes de ser uma experiência da arte.

Para alguns pensadores, como Alva Noe em seu livro Strange Tools: Art and Human Nature, pornografia não pode ser arte porque ela cumpre uma função específica, a masturbatória, que tira do espectador a possibilidade de imergir e fruir da obra per se. E que, por ser incapaz de permitir ao seu espectador transcender e questionar, ela não pode ser arte. É um argumento muito parecido com aquele estabelecido por hermeneutas como Gadamer e Ricoeur que dizem que, se o espectador não é de alguma forma refigurado e/ou ressignificado após imergir numa obra, então ou a obra falhou em cumprir sua função como arte, ou ela simplesmente não é arte.

(O vídeo só possui legendas em inglês)

Mas é aqui que reside uma brecha, possivelmente, a favor da pornografia: como dissemos, o significado de “arte” é elusivo, e embora nós tenhamos uma noção aprofundada e exegética de seus significados mais abstratos, nós também percebemos seus aspectos de reprodutilibilidade no mundo contemporâneo. Tal qual apontado por pensadores como Adorno e Benjamin, que nos lembram que, independente de que tipo de juízo de gosto emerge desse tipo de obra, nem por isso elas deixam de ser arte.

Que tipo de reflexão um filme como Transformers proporciona? Existe uma distinção qualitativa tão grande deste em relação à, por exemplo, um clássico do soft porn como Emmanuelle no Espaço? São obras descartáveis, para consumo, que cumprem uma função específica: entretenimento. E ninguém duvida nem por um instante que cinema seja uma forma de arte, pois na mesma medida em que o cinema oferece Transformers, ele oferece Bergman. E a mesma lógica se aplica aos quadrinhos – na mesma medida em que oferece super-heróis descartáveis, oferece Eisner e Tezuka. Pornografia pode certamente ser uma forma de arte, se a arte é compreendida no sentido de ofício; como muitas outras, pode ser tanto uma arte aplicada (tem sua utilidade de alienação e consumo) ou uma bela arte (criada pela sua estética e ajuizada pela sua beleza inata).

E mesmo no campo moral, violência é algo tão publicamente condenável quanto o sexo, mas que não recebe nem remotamente o mesmo tipo de repreensão social. Doses excessivas de violência explícita não causam nem remotamente o mesmo tipo de impacto que o sexo explícito – motivo pelo qual o terror gore é considerado uma forma de arte legítima, mas pornografia não. A arte, sob o crivo de uma lógica filosófica, não permite dois pesos e duas medidas.

O que nos leva imediatamente para uma extensão do argumento, que não apresenta razão para não ser aplicada sobre a pornografia: sim, existem inúmeros problemas sobre essa forma de entretenimento, principalmente a maneira como a indústria se organiza, o tipo de coisa que ela produz e seus efeitos sobre as mentes não muito estáveis de seus consumidores. Entretanto, se argumentarmos dentro de uma lógica ética, como a proposta por Singer, o problema não está na pornografia em si, mas enquanto ela é aplicada como conceito. O que significa que o que ela é hoje não necessariamente continuará sendo o que ela significa amanhã.

Alguns pensadores já trabalham nesse sentido. Pornógrafas feministas como Madison Young são um exemplo de como as preocupações morais envolvendo a pornografia podem ser subvertidas. Seu trabalho inclui aspectos normalmente deixados de lado na pornografia mainstream, como o objetivo de projetar uma percepção mais realista do sexo – como o consentimento e a comunicação. O que não somente educa a audiência sobre como sexo realmente é – ou deveria ser – como também não apresenta uma percepção degradante e objetificadora da mulher. Não obstante, enquanto esse artigo é escrito, estreia no Brasil o filme da diretora argentina Albertina Carri, As Filhas do Fogo, que se auto-denomina uma pornô feminista, cuja criadora afirma: “sexualidade sem repressão nos levará a sociedades mais maduras”.

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A diretora argentina Albertina Carri.

Não é o caso de não haver pornografia, ou de que ela não pode ser considerada uma forma de arte. É o caso de que ela ainda está passando por essa ressignificação, enquanto a sociedade também ressignifica as relações de poder entre os gêneros e o lugar da mulher na sociedade. E ressignificar a pornografia como forma de arte é também uma maneira de desassociá-la de um nicho pérfido de mercado e/ou também desconstruir a objetificação e apropriação do corpo como mercadoria – especialmente o feminino. Afinal – com o perdão do “argumento de Godwin” – se Hitler pôde usar as belas artes, a exegese do mundo clássico e do Renascimento, para capitanear a revolução ideológica de algo tão monstruoso como o nazismo, então talvez exista a possibilidade de assumir que Serpieri possa usar algo considerado “moralmente desprezível” para apresentar uma crítica sociológica válida.

E se o efeito provocado pelo grotesco e pelos abusos refigura sua própria visão do sexo, então talvez Druuna consiga cumprir sua existência enquanto obra de arte – pode-se questionar as escolhas, assim como não ser compatível com o juízo de gosto do leitor. Mas não questionar sua validade como um objeto de arte e entretenimento e, em alguma medida, de reflexão.

Ou talvez todo esse argumento seja vazio, e falte sensibilidade e alteridade para este colunista. Não cabe dizer. Cabe apenas entender que, após contemplar a obra de Paolo Serpieri, o leitor – para bem ou para mal – nunca mais será mesmo.

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