Refugiados mostra um recorte da vida de quem não um lugar para chamar de seu
“Seja lá o que as outras pessoas pensam dos refugiados da Selva (de Calais), uma imagem sempre resumirá tudo para mim: homens adultos, encurvados, colorindo com canetinhas”, relata Kate Evans em seu quadrinho jornalístico Refugiados – A Última Fronteira.
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A parte mais difícil do ofício de qualquer historiador e sociólogo é tentar fazer os leigos entenderem que fenômenos sociais e políticos não acontecem espontaneamente. Existe um nexo causal histórico e social que pode ser curto ou extenso, ligando uma eclosão de problemas dessa ordem à um conjunto de negligências e/ou crueldades que se arrastam por anos, décadas, ou mesmo séculos.
O relato de Evans, lançado recentemente pela DarkSide, é baseado nas suas vivências entre 2015 e 2016 no acampamento de Calais, região portuária e fronteiriça da França, que sofreu uma crise humanitária ao receber uma legião interminável de imigrantes após o agravamento da guerra civil na Síria. A autora já possuía alguma experiência com esse tipo de situação, o que faz com que a HQ nos ofereça um ponto de vista bastante equilibrado. Temos uma análise objetiva da situação sociopolítica do lugar, mas sem abrir mão da empatia que despertam as condições de privação extrema vividas pelos refugiados.
Esteticamente – talvez a parte menos importante desse álbum – a inglesa faz algumas escolhas interessantes. Seguindo a bem estabelecida escola dos quadrinhos alternativos e autorais europeus, a diagramação dos quadros é econômica e bastante aberta, privilegiando situações que ilustram seus argumentos e expressões que explicitam os sentimentos dos refugiados mais do que a narrativa em si. Calais é conhecida pela sua tradicional produção de rendas, e a autora pontua belamente esse aspecto tradicional delimitando as linhas dos quadros com motivos que remetem a essa arte. Beleza essa que, em muitos momentos, contrasta com a exposição da pobreza dos refugiados, o que não deixa de ser um argumento em si próprio sobre o privilégio eurocêntrico e a miséria de quem busca migalhas deste.
Não obstante, de início causa estranheza os desenhos deliberadamente infantilizados e uma colorização primária com giz de cera. Mas retorne à citação de introdução desse texto. Evans claramente está prestando um tributo estético aos refugiados, apresentando sua narrativa-reportagem não apenas pelo seu próprio ponto de vista, mas buscando deliberadamente incluir aí o ponto de vista dos próprios refugiados. Ela aparenta não ter a pretensão de tomar para si as palavras destes. Então, realiza sua devida reverência aos sobreviventes apresentando suas histórias de uma forma que lembra esteticamente os esforços dos próprios refugiados para lembrar seus lares abandonados, em parcos desenhos feitos com canetinhas e giz.
Falsas ideologias e máscaras políticas
Sobre as denúncias em si, essas sim são a parte mais importante da obra. E também as mais difíceis de serem comentadas. Evans faz críticas abertas e diretas contra as forças institucionais francesas e inglesas – diretamente envolvidas na situação de Calais – e aqueles que as defendem. É um ponto extremamente delicado, mas absolutamente justificado. A crise síria explicita uma movimentação política no Ocidente que já vinha cozinhando há algum tempo: a ascensão da direita conservadora. Como é bem sabido, essa ala política pode ser resumida de maneira relativamente simples para fins de orientação: liberal na economia, conservadora nos costumes. Um posicionamento que quase sempre termina mal para os mais socialmente e economicamente vulneráveis.
A problemática em torno de Refugiados é um reflexo de uma simplificação entre ideologias de direita e de esquerda: para a direita, o sistema funciona – quando ele deixa de funcionar, o problema são as pessoas que não se adequam a ele. Para a esquerda, o exato oposto: a prioridade são as pessoas, e o sistema deve se adequar para atender o melhor e máximo possível delas. É óbvio que ambos os posicionamentos são legítimos, e uma democracia funcional e saudável deve oferecer espaço para que todos expressem suas opiniões de forma igualitária.
O problema é que toda crise humanitária, como a apresentada em Refugiados, apresenta uma condição limítrofe por definição – as regras normais de uma sociedade organizada não se aplicam ali, porque: a) Na melhor das hipóteses, qualquer organização leva uma quantidade considerável de tempo para acontecer e, subsequentemente; b) Não existe num lugar assim um sistema para o qual apelar. E é aqui que o pior lado das ideologias começam a aparecer – particularmente, essa direita conservadora.
Porque, por definição, conservadores conservam. Eles mantém tradições e costumes porque de alguma forma acreditam que sempre foi assim (um paradoxo histórico) ou que esses costumes e tradições os servem bem de alguma forma. A imersão de uma grande quantidade de pessoas de outras culturas em sua sociedade representa uma ameaça ao seu estilo de vida, e apontam coisas como o uso de recursos públicos para essas pessoas que “não deviam estar ali”, ou a ascensão da criminalidade em locais onde essas pessoas se concentram. Tais falácias, facilmente refutadas por dúzias de estudos que contextualizam muito bem esses argumentos ou mesmo os negam com provas contundentes, servem como retórica para políticos extremistas, que veem no populismo imediato que essa situação desperta nos conservadores um palanque eleitoral.
Privilégios e privilegiados
Mas, independente de qual seja o posicionamento político dos nativos, o relato de Evans é extremamente preciso ao apontar algo óbvio, e que deveria despertar um mínimo de empatia pela dignidade humana: essas pessoas sofrem. Muito. E, independente do que qualquer um acredite, os privilegiados sempre tem alguma medida de responsabilidade sobre os desprivilegiados.
Seja diretamente, como o fato de que a ingerência euro-americana nas sociedades orientais é objetivamente responsável por inúmeras convulsões sociais na região, ou indiretamente, pois qualquer tipo de moralidade ou ética racionalmente orientadas não permitir nos eximir de qualquer forma se fazemos parte dos privilegiados. E não se engane, amigo leitor: você pode pagar contas e ter seus problemas, mas se você está lendo esse texto no seu computador pessoal ou celular de último modelo, você é bastante privilegiado em relação aos que tiveram seus lares reduzidos a escombros por forças políticas e militares com as quais somos indulgentes. Porque, como observado pela autora, nós financiamos, em alguma medida, essas mesmas forças.
Muitas pessoas que rejeitam esses imigrantes não são necessariamente más, embora existam aqueles que são muito, muito cruéis, e que se dedicam a fazer a vida miserável dessas pessoas ainda pior. Um elemento gráfico interessante que Evans usa no álbum, é a inserção de diversos comentários fisgados da internet em relação aos refugiados. Alguns são monstros, que pregam a dizimação desses povos. Não importa se você acredite que falas assim são inconsequentes. Não são, e podem gerar muitos danos. Mas outros são apenas pessoas claramente sobrepujadas pela situação.
São pessoas cuja situação dos refugiados desperta nelas um profundo sentimento de fragilidade em relação ao sistema – “elas vão tirar meu emprego; “não temos recursos para sustentar a todos” – mas que, ao invés de tentar subverter o sistema contra aqueles que são realmente privilegiados (nomes como Marine Le Pen e David Cameron pontuam a HQ), pois eles seriam também beneficiados por isso, decidem lutar pelo e para o sistema para destruir aqueles que são mais vulneráveis. Desnecessário dizer quem sai ganhando com isso. E não são pessoas como você.
Evans se coloca aqui ao lado de outros grandes quadrinistas-jornalistas, como Joe Sacco, ao construir uma HQ simples, mas que realiza bem seu propósito. Ela não é tola ou ingênua de acreditar que algo assim vai mudar o mundo – ela esteve nele de verdade. A função de Refugiados é bastante objetiva: lembrar. Manter na superfície da nossa consciência de que o mundo é um lugar cheio de dor e sofrimento, e de que nós fazemos parte desse mundo.
E que – mais importante – muitos que sofrem aguardam ansiosamente nosso posicionamento. Esperamos que para o bem delas. Pois, como disse certa vez Eduardo Galeano: “Temos, há muito tempo, guardado dentro de nós um silêncio muito parecido com estupidez”.