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O Circo Mecânico Tresaulti – Respeitável público!

O Circo Mecânico Tresaulti joga no seguro, mas peca na forma da mensagem

Obras literárias sobre circo são pouco usuais. Ainda mais as que contenham elementos de suspense, mistério, intrigas e steampunk. O Circo Mecânico Tresaulti, de Genevieve Valentine é uma aposta que traz todas estas premissas e um certo orgulho de seu produto final.

Compre clicando na imagemResenha do livro O Circo Mecânico Tresaulti, de Genevieve Valentine

 

Habitualmente, à sinopse: A história acompanha Little George, um adolescente, em sua longa jornada com o Circo Tresaulti, enquanto vão de cidade em cidade pelos anos depois de uma longa guerra. Tanto ele quanto o resto da trupe mecânica precisam encarar os desafios de um governo mambembe interessado em suas capacidades e de uma sociedade que os enxerga apenas como aberrações a serem admiradas.

O Circo Mecânico Tresaulti foi lançado em 2016 pela DarkSide Books e contém 315 páginas.

Há de se admirar a coragem de Valentine em escrever sobre a convivência de um grupo itinerante. E ainda que estes membros, majoritariamente, sejam feitos de partes mecânicas bizarras, no todo, o livro é tenta ser uma história sobre família. Provém disso certa elegância, já que a pureza da mensagem se mistura a toda uma aclimatação interessante de distopia, onde a sociedade está buscando se reerguer de um pós-guerra devastador. Há uma sensação quase vitoriana do que o mundo se tornou e, nisto, não apenas o Circo Tresaulti se destaca, mas agradavelmente destoa.

E se na Fantasia Urbana a cidade contém um protagonismo intrínseco, aqui o objeto é deturpado e transposto para o circo. Ele detém a importância social como pano de fundo no contexto da fuga. Este peso se intensifica quando visto que as pessoas que lá trabalham e querem modificações corporais são, basicamente, excêntricas, porém, numa busca pela normalidade própria.

O livro trabalha muito com subtextos: passagem de tempo, disputas internas, amor, ódio, desejos e traições. Tudo é extremamente aberto às interpretações e qualquer compreensão dentro destas áreas tanto podem estar corretas, quanto erradas. E isto, apesar de bem interessante, pouco importa no macro da trama, já que o minimalismo é preenchido pelas lacunas da especulação do leitor. Há também a possibilidade de se negar estes mesmos elementos e ler O Circo Mecânico Tresaulti como uma obra mais simples, desta forma o ato de sentir ou não apego aos personagens é pessoal, desde que a ideia de família e sua disfuncionalidade sejam compreendidas.

As inferências também existem. Genevieve Valentine contextualiza-as nas relações entre os integrantes do circo. A autora trabalha virtudes e defeitos que o Naturalismo exige, porém muito pouco e também a interpretação do leitor. Aqui esse espaços de preenchimento, que já soam excessivos, se tornam as muletas de Valentine. Assim, sendo protocolares, estas inserções não situam muito e se perdem rapidamente diante do passar das páginas.

Apesar das inferências e subtextos citados aqui, isto não torna o livro obrigatoriamente positivo ou uma experiência única. É protocolar, funcional e pouco soma. Não há o que empolgue ou traga a reflexão aparentemente pretendida. É tão lugar-comum que a impressão que fica é que Valentine se tornou mais uma garantista da obra entregando algo mediano, do que alguém que procurou trazer à tona as deturpações como objeto de discussão. Há pouco ou quase nada de profundidade que suas páginas pedem, se valendo mais de sua diferenciação histórica com circos, mecanismos e disfuncionalidade em plena distopia.

Resenha do livro O Circo Mecânico Tresaulti, de Genevieve Valentine

Genevieve Valentine

Isso se deve também, em parte, à obra ser inchada de personagens: Little George, Stenos, Elena, Bird, Irmãos Grimaldi, Jonah, Brio, Ayar, Ying, Boss, Bárbaro, Big George, Big Tom, Fátima, Alto, Altíssimo e Panadrome. Apesar do protagonismo de Little George, paga-se pelo excesso de ter tantas pessoas com vozes ativas na história. Muitos deles dizem pouco e estão lá nitidamente por necessidades narrativas que surgem em seu decorrer. São sucessivos testes à Suspensão de Descrença, que, apesar de não serem tão pesados, são relativamente frequentes e tiram um certo frescor que é necessário para que a trama se renove dentro de suas ideias. Mas há outros personagens que estão ali para dar à obra uma aparente relevância, mas que, na prática, servem quase que exclusivamente para proporcionar páginas há uma obra que ficaria evidentemente mais curta sem elas.

Infelizmente, este escopo serve para mostrar que os personagens, em sua maioria, são narrativamente deslocados demais para viver em grupo. Ao colocar o circo como a cola que une e ressignifica, como um elemento mágico, Valentine flerta com o roteirismo e perde em possibilidades, como uma inerente ausência isonômica dentro de um sistema social altamente caótico como o apresentado. Isso também fragiliza outros personagens, como Boss – a líder –, ao torná-la pouco interessante não somente como a dona do circo, mas também como pessoa, e o livro acaba se escorando em Little George. O protagonista, então, que tem um bom conceito de conflito interno, sofre uma profusão pouco densa e com diversas escolhas pouco inspiradas do autor, além de situações que elevam seu patamar, mas que são repentinas e corridas. Some-se isso às variações inconstantes entre Narrador-Observador (que demora a se decidir se é uma história episódica ou parte de algo maior) e Primeira Pessoa, no caso, George. Com aparições inconstantes, ele acaba sofrendo de uma desproporção no papel principal.

Mas nada é tão inócuo quanto a dinâmica Stenos/Bird, dois personagens que se amam, mas ao mesmo tempo se odeiam por causa de um par de asas mecânicas. Há diversas incoerências originárias desta relação que provém das mesmas situações citadas alguns parágrafos acima, como inferências e subtextos. As interações de ambos são enfadonhas, apequenadas e fracas apenas para que a disputa se perca diante do clichê. Muda-se a embalagem, mas a fórmula prossegue a mesma.

O sentimentalismo permanece

Algumas coisas boas também acontecem: Um amor LGBT feito de maneira sensível, assim como o tom steampunk que é muito marcante. Mesmo nas partes mais pesadas, é possível sentir o processo de transformação de pessoas em máquinas. Até para além disso, a sensação de dor física, agonia e um “q” de preconceito permanece. 

Mas se o livro toca, é muito pelas lembranças do que Alec, o antigo detentor das asas, traz aos personagens. O pesar é sentido de maneira intensa, ainda que discreta já que o conceito de luto é esticado através de eras diante de uma morte traumática. Assim como o mistério em torno de seu falecimento. Há nele um legado interno à obra e que dá um tom interessante de melancolia. Genevieve consegue fazer, para mais ou para menos, até mesmo em motivação e mesquinhez, que todos os personagens girem em torno desta sensação de morte recente. Não é perfeito da maneira que está lá, mas alcança seu objetivo.

Isto posto, O Circo Mecânico Tresaulti não é ruim, mas tem um certo charme, além dos defeitos crassos. É um livro que busca falar sobre companheirismo, mas acaba se tornando interessantemente epigráfico, ainda que tropece na metodologia textual e se afobe em diversos momentos. No geral não tem sucesso tanto quanto pensa ter, porém não é um fracasso total. Contextualizando de forma simples: falta potencial para o que realmente se propôs, apesar de qualidades inerentes. E ao seu fim, Genevieve Valentine se prova uma escritora com potencial para a estranheza, mas ainda em formação e com arestas a serem aparadas.

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