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Grama – A velha história a que pertencemos!

Grama é um drama biográfico atemporal

Grama, publicado pela Pipoca e Nanquim, é um manhwa que ecoa as tensões e memórias de um período obscuro da história – ao menos para os ocidentais. Realizado por Keum Suk Gendry-Kim, a HQ conta a história de Ok-sun Lee, uma vítima, de muitas formas típicas, das Guerras realizadas pelo Japão na primeira metade do século passado. Colocado dessa forma, parece um relato histórico-biográfico como outros. Não é.

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Inevitavelmente, acaba sendo comparado com outros grandes monumentos biográficos das HQ´s, como Maus. Mas o tom aqui é outro. E relato uma experiência pessoal do porquê. Alguns anos atrás, um professor tomava café no centro de SP. Nosso professor era nascido em Okinawa, e um homem inteligente – falava diversas línguas e dialetos. Em um determinado momento, ele apontou um conhecido de etnia coreana que entrara, e pediu atenção. Depois de uma breve conversa amigável, ele perguntou o que havia acontecido de errado.

A pegadinha era, na verdade, um teste cultural e histórico. Nosso professor havia falado com ele em japonês, e perguntou se foi percebido. O fato é que eram dois homens muito velhos, nascidos em outra época, quando Coreia e Japão eram inimigos mortais. Então, por que o homem coreano saberia falar japonês se eram então inimigos? Seguiu-se um longo aprendizado, para mim e muitos outros, diretamente relacionado ao que é mostrado na HQ Grama. Voltaremos a isso no final.

Ao iniciar seu projeto expansionista, o Japão não estava interessado apenas em tomar terras e recursos. Seu objetivo final era niponizar toda a Ásia: Um esforço decididamente colonialista e imperialista, aos moldes das potências ocidentais. Nisso, o que se seguiu foi uma imensa lavagem cultural, onde qualquer aspecto cultural era proibido e os nativos eram tratados como cidadãos de segunda classe – ou até pior – enquanto não “assimilassem” a cultura japonesa. Uma farsa, é claro, para garantir tanto a submissão quanto o colaboracionismo.

O “até pior” acima era reservado, claro, para as pessoas mais vulneráveis dos locais invadidos pelo Japão. Mulheres e crianças, obviamente, estão inclusas. A história de Lee começa pertencendo a ambas as categorias. Em uma Coreia arruinada, acaba sofrendo o destino de tantas outras meninas: É vendida, com uma promessa de vida melhor. Uma promessa sórdida, claro, pois ninguém nesse mundo é ingênuo ao ponto de não saber o que acontece com uma menina literalmente vendida em um território economicamente arruinado e assolado por soldados: Prostituição.

O termo eufemístico usado é “mulher de conforto”. Afinal, nenhum vilão admite que é vilão, e uma das muitas nuances trabalhadas na HQ – sempre do ponto de vista de Lee – é que aqueles que perpetram o sofrimento sempre acreditam estarem moralmente intitulados a tal. Tudo possui um propósito – sim, aquela velha balela mal-interpretada de Maquiavel dos fins e dos meios.

Postulado moral

E o sumo final de Grama é exatamente esse. Embora ele tenha sim uma função histórica, de denúncia, etc, etc, o que sobra dela é essencialmente um postulado moral: Independente do local ou época, demonstrações vulgares de poder – seja ele particular ou público; de empreendedorismo ou estatal – sempre seguem os mesmos padrões nefastos e abjetos. O relato de Lee choca, sim, porque é extremamente gráfico e detalhado – não me surpreenderia de encontrar por aí relatos de abalo emocional com ela. A brilhante arte de Gendry-Kim colabora muito para isso, é verdade.

Mas o primeiro impacto surge do fato de imaginar que aquilo é real, algo que aconteceu com um ser humano. O segundo impacto surge do postulado moral – isso ainda acontece com seres humanos hoje. Porque as verdades que levaram ao comportamento japonês daquele período – extremo nacionalismo, projetos de poder, crença em uma superioridade étnica e cultural – ainda existem, e são partes definidoras de muitas nações. A nossa inclusa. Por isso, o relato de Lee é muito mais do que um documento histórico ou um drama comovente – é uma afirmação do nosso lugar na história. A história que objetivamente construímos, eu e você, amigo leitor – Grama é um daqueles textos que nos lembram de que ninguém será eximido.

Talvez por isso, não exista muito o que dizer sobre a narrativa da HQ em si. Não é sobre o que ela fala ou a experiência que ela tenta provocar no leitor, nem o que ela pretende ensinar. É sobre o que ela afirma. E o que ela afirma é o mesmo que eu ouvi do meu professor naquele café – tão amargo, de muitas formas, por sinal.

Aquele senhor, assim como sua família, foi obrigado a aprender japonês contra a vontade dele. O que nos estranhava era a naturalidade com que falava – levando em consideração toda a opressão. Lembro – meu professor era Okinawa. Também membro de uma etnia oprimida pelos japoneses. Quando perguntado qual era o fundamento do teste, ele apenas queria saber se estávamos atentos aos detalhes. Quando questionado sobre o contexto, deu uma de suas muitas vagas respostas: “Isso não é importante”.

Lembramos para que não precisemos sofrer. Esquecemos para que possamos existir.

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