Contos dos Orixás acerta em todos os seus aspectos
É algo que já havia mencionado anteriormente por aqui; mais recentemente, no texto que escrevi para Angola Janga: uma das maiores dificuldades em ser um professor de história ou de qualquer disciplina humana no Brasil, sem estar lecionando algo relacionado a um aspecto eurocêntrico da história ou da cultura, é bizarramente difícil. Principalmente porque nos falta material de apoio, referencial, para que possamos estimular a criançada a se interessar por outros modelos e matrizes histórico-culturais. Felizmente, isso tem mudado aos poucos, graças principalmente ao esforços de gente como Hugo Canuto e seu Contos dos Orixás.
Canuto é soteropolitano de nascimento, arquiteto de formação mas, pelo jeito, quadrinista de alma. Só isso explica essa visão única apresentada por ele neste volume, cuja quantidade não condiz com sua densidade. À primeira vista, Contos dos Orixás pode parecer simplesmente uma homenagem de um artista local ao Rei Jack Kirby – mas um olhar aproximado revela mais do que isso.
É um fato que o autor começou a obra dessa forma – uma série de artes que apresentavam divindades de matriz africana, emergindo principalmente da cultura iorubá, emulando o estilo do lendário criador dos Vingadores. De fato, a primeira arte apresentada por Canuto era extraída justamente de Vingadores #4, de 1966, que apresentava o retorno do Capitão América.
Mas o que começou como um exercício estilístico se tornou algo muito maior. Podemos especular dois motivos: primeiro, Kirby é uma unanimidade de 11 entre 10 fãs de quadrinhos. A ideia de personagens de uma cultura afro-brasileira no traço do cara que criou Thor e os Novos Deuses era simplesmente deliciosa demais para ficar restrita aos quadros pontuais.
Segundo, o motivo levantado no primeiro parágrafo: praticamente inexiste, para o grande público, material de qualidade e acessível sobre culturas e mitos não-eurocêntricos no Brasil. E a colossal demanda – o projeto de Contos arrecadou o triplo do valor pedido no financiamento coletivo – prova que ainda estamos muito carentes e, principalmente, sedentos por criações assim.
E Canuto não decepciona. Em pouco mais de 120 páginas, o autor consegue entregar material para uma vida de deleite. Explica, para os ignorantes no assunto como este colunista, o mito de criação da cultura iorubá com clareza e elegância, introduzindo sutilmente conceitos como Òrun e axé, além da instigante distinção hierárquica entre as divindades que compõem o panteão apresentado.
Muito mais do que um exercício estilístico
De fato, uma das coisas que chama a atenção nas primeiras páginas do volume é justamente a versatilidade artística e fidelidade cultural do autor. Na apresentação do mito de criação dessa matriz, que compreende diversos sistemas de crença – como o Candomblé, Umbanda e Santeria – Canuto se utiliza o estilo pictográfico típico das culturas originárias dessas crenças, emulando xilogravuras e ilustrações bidimensionais. Simplesmente belíssimo.
E quando chegamos ao conto de fato, temos a cereja do bolo. Todo mito é algo relativamente disperso e de narrativa errática – desde os mitos mais conhecidos, como os grego e nórdico, até aqueles que fazem parte do cotidiano ocidental, como o cristão. Dar sentido para eles e transformá-los numa narrativa palatável para o público contemporâneo é sempre algo capcioso.
O Thor de Lee e Kirby é um exemplo clássico: dane-se a mitologia, queremos martelos e relâmpagos. Se você não se compromete, você não decepciona, certo? Pois o autor escolhe o caminho díficil – comprometido desde a capa, a ideia é apresentar uma narrativa organizada e inteligível, para que o público leigo possa imergir nesse lado tão importante, mas tão ignorado da cultura brasileira.
Não é que Contos seja algo absolutamente surpreendente. Como dito anteriormente, mitos compartilham diversas características. É inclusive por isso que existe um ramo acadêmico dedicado a estudar essas qualidades, chamado mitologia comparada, da qual Joseph Campbell é um dos maiores expoentes. Não é esse o ponto do autor ou do volume. A ideia é dar ordem, divertir e, no meio do caminho, ensinar alguma coisa sobre história, cultura e mitologia africana e afro-descendente.
E desde o início, quando vemos as forças do assustador Ajantala avançarem sobre o magnífico design da Cidade Mãe, assim como a resposta do glorioso Xangô – protagonista que atende por “Senhor do Trovão”, veja que coisa – somos capturados por uma atmosfera instigante, com uma trama de ritmo intenso e bem conduzida e de desenhos bombásticos. Afinal, uma homenagem à Kirby não seria respeitável se cada virada de página não fosse um soco na cara do leitor.
Para gregos e troianos – ou uma analogia de cultura africana mais apropriada
De fato, uma das coisas mais interessantes é o tamanho do acerto nas escolhas do autor: como qualquer sistema de crença, existem aspectos sectários entre os praticantes da religião, que se manifestam, incidentalmente, também de muitas formas estilísticas. Talvez, se tivesse escolhido um aspecto específico de uma dessas crenças para uma representação austeramente fidedigna desses mitos, o autor tivesse afastado mais leitores do que aproximado.
Ao homogeneizar a apresentação de características compartilhadas por diversas crenças, sob a égide de um dos mais amados artistas de quadrinhos de todos os tempos, Canuto faz o “quase” impossível, agradando gregos e troianos. Fãs de quadrinhos leigos, praticantes das crenças homenageadas, e leitores casuais interessados em uma apresentação acessível dessa cultura, desses mitos e dessas narrativas: Contos dos Orixás é um deleite para todos.
Não obstante, o volume em si ainda é de um preciosismo reverenciável. Papel de alta qualidade, capa cartonada que não arrebenta o bolso do amigo leitor, e que conta com maravilhosos extras, como artes de diversos ilustradores convidados para representar as divindades iorubá, assim como uma minuciosa bibliografia para os interessados no que acabaram de ler se aprofundarem mais no assunto.
Por essas e outras, Contos dos Orixás deveria ser material de base para escola. Mas isso só poderia ser, de fato, se houvesse tempo e dedicação aos estudos históricos e culturais no nosso sistema de ensino – cuja mediocridade e desprezo são bastante conhecidos. Portanto, só resta ir pelo caminho difícil, e produzir a obra de referência para que, um dia, ela possa chegar às mãos dos pequenos amigos leitores. E uma outra parte dessa tarefa incute a você, grande amigo leitor, celebrando e divulgando artistas de talento como Hugo Canuto e obras como Contos dos Orixás.
Axé!
PS: A gente faz a nossa parte: Dê uma olhada nesse fantástico artigo sobre mitos africanos e cultura pop pra ir se aquecendo!