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Cinco Vermelhos – Uma aula de cultura japonesa!

Cinco Vermelhos é uma grandiosa celebração do melhor da arte japonesa

É um fato conhecido que existem três países Japão: antes da chamada “Reforma Meiji”, após esta, e depois da Segunda Guerra. É um caso sui generis de desenvolvimento cultural, criando aspectos endêmicos, mas também assimilando, após a Reforma, características de culturas ocidentais diametralmente opostas à sua também de maneira única. Todos esses períodos possuem traços específicos de arte que os representam. Seria uma tarefa hercúlea tentar reuni-los em uma única obra. Talessa Kuguimiya, em Cinco Vermelhos, consegue com louvor.

Resenha de Cinco Vermelhos

Este colunista tem o péssimo e assumido hábito de caçar referências para poder traçar comparações que facilitem para o leitor visualizar a obra enquanto leem a crítica. Uma forma de compensar observações verbais sobre uma forma de arte visual. No caso de Cinco Vermelhos, o resultado é idiossincrático: as referências são claras e explícitas, mas o produto final é incomparável. Se a colocação parece abstrata, é porque sua execução é mesmo de difícil analogia. A autora, de ascendência japonesa, reuniu todo o seu arsenal de conhecimentos artísticos nipônicos e os depositou sobre as páginas de um mangá.

Mangá? Talvez seja incompetência intelectual deste colunista tentar definir essa HQ assim – talvez maior incompetência ainda tentar defini-la de qualquer forma. Porque, como dissemos, é difícil achar paralelos para a obra. Mesmo a autora, no breve, mas brilhante posfácio, apresenta algumas das ideias que permeiam o quadrinho. Mas mesmo isso não é o bastante, pois existem influências latentes na HQ que Kuguimiya deixou – ou escolheu deixar – passar para o leitor. Afinal, quando se trata de fruir de uma obra, menos importante do que entender como ela foi confeccionada é imergir nas suas páginas.

E tal imersão é proporcionada de maneira magnífica pela simples, mas instigante narrativa. Tal filosofia é rapidamente exemplificada e identificada pelo uso de haikai, a envolvente poesia japonesa que segue o mais fino substrato do pensamento oriental, que busca transmitir o máximo de impressões com o mínimo de palavras, na abertura de cada ato. A história conta a trajetória de Haya, uma jovem menina que, após ver sua família ser brutalmente assassinada por um samurai, dedica sua vida a buscar justiça. Nós acompanhamos seu desenvolvimento, seu treino com um mestre recluso, seu estratagema para se aproximar do samurai – agora um poderoso daimyo – e sua conclusão epifânica.

Resenha de Cinco Vermelhos

Ao amigo leitor, pode não parecer simples, mas simplório. Peço que volte para a consideração do segundo parágrafo. Cinco Vermelhos tem sua realização não na surpresa de sua proposta, mas na beleza de sua execução. Mencionei que existem referências que a própria autora preferiu não citar, e sobre a narrativa há uma delas: a trama remete aos melhores chambara jidaigeki do cinema japonês, em particular os clássicos do pós-Guerra.

Com uma cadência perfeita e um foco na ambientação, a autora não usa mais palavras do que o necessário, deixando as imagens narrarem a história de Haya, potencializando seu impacto através da imersão e das ações. A escolha da forma de arte com a qual a trama é apresentada só torna tudo mais épico. Se Masaki Kobayashi ou Hideo Gosha tivessem escrito algum quadrinho durante suas vidas, o resultado seria algo parecido com Cinco Vermelhos.

Budo com pincel

E na arte temos a apoteose desse volume. Como dissemos no início do texto, o Japão é muitos países em um, devido ao seu desenvolvimento histórico bastante particular. E tentar inserir elementos artísticos que nos lembrassem desses diversos períodos poderia facilmente gerar uma cacofonia visual, que faria perder todo o brilhantismo da obra. Entretanto, de alguma forma – subentende-se “com imenso esforço e dedicação” – Kuguimiya consegue encontrar um limiar harmônico, onde passado e presente da arte japonesa se encontram para gerar um resultado primoroso.

É um divertido deleite para os olhos perceber como o arte faz essa transição durante a narrativa. Com o ukiyo-e, a tradicional forma de xilogravura e pintura nipônica, representando o passado, e o estilo mangá representando o presente, a autora cria linhas finas e grossas próximas do traço de um Goseji Kojima quando precisa dar andamento para narrativa, e deixa o nanquim escorrer pela página – tal qual o sangue de um samurai derrotado – quando precisa evocar o épico dentro da obra. O domínio de Kuguimiya com o pincel é de fazer inveja a qualquer bushi com sua katana.

Com liberdade de diagramação, Cinco Vermelhos lembra muito mais um conjunto narrativo visual de ukiyo-e do que um quadrinho de fato. A disposição das cenas remete, de muitas formas, ao teatro kabuki – uma dança visual de cenas que transitam entre a contemplação serena e a celebração da violência como arte. O que não é uma reflexão nem um pouco surpreendente ao término da leitura, dado o talento da artista – motivo pelo qual deveríamos comparar Cinco Vermelhos ao No e menos ao kabuki (uma pequena brincadeira para os amigos leitores falantes de japonês aí fora).

Resenha de Cinco Vermelhos

Não bastasse toda o brilhantismo artístico e o classicismo narrativo, Cinco Vermelhos ainda trabalha com uma proposta transmidiática – algo não exatamente inovador, mas raríssimo se tratando de quadrinhos. Através de QR Codes espalhados pontualmente pela HQ, a autora propicia ao amigo leitor referências externas visuais animadas – trazendo, porque não, um certo aspecto do anime para completar o caldeirão de referências nipônicas – além de uma trilha sonora autoral que dá clima para cenas importantes. Pode-se questionar o sucesso da empreitada – os mais conservadores podem torcer o nariz, mas este colunista gostou – mas não se pode questionar que Kuguimiya tem uma visão autoral ousada e destemida para sua obra.

A única consideração possível de ser feita – talvez – seja em relação ao texto. Pontualmente, as falas de alguns personagens parecem um pouco deslocadas, ou um tanto descritivas em excesso. Como podemos criticar excesso de palavras em uma obra que acabamos de louvar por ser econômica em sua narrativa? Exatamente por isso – a narrativa visual é tão grandiloquente e bem conduzida, que, pontualmente, o posicionamento de certas frases e suas pontuações parece um pouco excessivo. Mas, deixando claro, absolutamente nada que diminua a excelência deste volume.

Cinco Vermelhos é uma obra independente, financiada coletivamente. É uma daquelas coisas que nos lembram de que, longe dos grilhões do mainstream e mesmo da asa cuidadosa das editoras autorais e alternativas, existe um oceano de talento esperando para nos arrebatar, tal qual um tsunami. Cinco Vermelhos é, sem nenhum pudor, uma conquista artística. Oxalá Talessa Kuguimiya venha a ser descoberta pelo grande público. Um artista desse calibre merece muito mais reconhecimento. Mas que sabemos que virá naturalmente, pois quem produz uma obra dessa envergadura dificilmente tem apenas uma bala na agulha.

Ou, mais apropriadamente, uma espada na bainha.

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