Quando a nona arte está no sangue, os irmãos dos quadrinhos botam pra quebrar
Duplas criativas são uma parte da essência dos quadrinhos. Claro, produzir um quadrinho pode muito bem envolver tanto uma única pessoa muito talentosa como um punhado delas, com tarefas bem definidas entre si: roteirista, desenhista, arte-finalista, etc. Mas existe alguma coisa, uma espécie de aura, no duo escritor-desenhista que exclama “quadrinhos” a cada letra e a cada traço. Como dissemos no nosso Na Tela sobre duplas criativas, é uma espécie de sinergia entre dois talentos aparentemente muito distintos, que convergem para criar uma obra de arte. Tal sinergia é difícil de ser alcançada. O que pode facilitar seu surgimento? Quando a tal dupla criativa compartilha o mesmo berço. E acredite: tal situação já gerou muito mais coisa boa do que o amigo leitor pode imaginar ou se lembrar. Por isso, separamos uma pequena – mas portentosa – lista de irmãos dos quadrinhos.
O resultado final acabou sendo mais diverso do que o inicialmente planejado, contando com representantes de diversos continentes, gêneros, etnias e períodos dos quadrinhos – o que só demonstra que a ideia de que criança que cresce junta faz quadrinho junta (ou, pelo menos, é o que nós gostamos de acreditar). A lista, como de hábito, não obedece nenhum ordem ou critério particular; apenas a enorme qualidade dos duos citados. Ao final de cada menção, separamos alguns trabalhos de destaque dos irmãos para você ir atrás sem medo. Sem mais delongas, e antes que a mãe de algum deles apareça para acabar com essa palhaçada, vamos aos melhores irmãos dos quadrinhos!
As Irmãs Giussani
Para abrir nossa lista, uma menção mais do que especial, representando a tradicional escola dos fumetti italianos. Afinal, não são “irmãos”, mas sim “irmãs” – e que não deixam nada a desejar para ninguém. Muito pelo contrário. O trabalho de Angela e Luciana Giussani não pode ser definido como nada menos do que revolucionário. Nascidas com 6 anos de diferença – Angela, de 1922, e Luciana, de 1928 – as irmãs milanesas, inicialmente, não tinham muitas pretensões artísticas.
Angela foi modelo por um breve período; e somente após se casar, em 1946, com o editor Gino Sansoni que adentrou o mundo das páginas em branco. Um de seus primeiros trabalhos foi ser responsável por uma linha de livros infantis da editora de seu marido, se familiarizando com as vicissitudes do meio. Sansoni então deixa a editora para se dedicar a projetos pessoais, alugando parte de um prédio residencial para transformar em sua própria editora. Angela, então, decidiu que seu lugar seria na cozinha do local. Mas calma: de um jeito bem diferente.
A pró-ativa milanesa havia se apaixonado pelo mundo editorial, e decidiu transformar a tal cozinha do recinto em um estúdio para estudo e produção de desenho e design. Inicialmente, a coisa não deu muito certo – os quadrinhos das aventuras de Big Ben Bolt, um trágico boxeador, não dão, nem de perto, tão certo quanto o casal esperava. Entretanto, eles não desistem. Reza a lenda que, após ler um livro de Fantômas, encontrado num trem, Sansoni decidiu investir em um novo tipo de personagem para atrair o público. Felizmente, sua esposa estava léguas à frente dele. Na verdade, do mundo inteiro.
Angela apareceu com uma ideia diferente: no lugar de um herói, um anti-herói. Um ladrão, na verdade. Astuto, obscuro, inescrupuloso na medida certa, sempre metido em aventuras perigosas demais para ele – para qualquer um na verdade. Apelidado com justiça de “O Rei do Terror”, Diabolik entrou para a história dos quadrinhos a partir de sua criação, em 1962, trazendo, junto com ele, suas criadoras. O quadrinho é considerado um precursor dos fumetti neri, quadrinhos mais pesados focados nas ações de anti-heróis e vilões – gênero amado até hoje. Inicialmente, apenas sob a batuta de Angela, o personagem ganhou o reforço da irmã caçula da mesma, Luciana, após esta se formar e arranjar um emprego pouco divertido numa fábrica de aspiradores de pó. Depois de 13 edições solo, Diabolik passa a ser oficialmente fruto de um duo dos quadrinhos – e um dos pouquíssimos exclusivamente femininos de que se tem notícia.
Não obstante, as duas também se tornam responsáveis pela própria editora, o que as torna uma verdadeira potência da história das histórias em quadrinhos – aqueles raros casos de “artistas totais” da nona arte. Diabolik em si é um sucesso monumental. Vendeu mais de uma centena de milhões de cópias e foi adaptado para todas as mídias que você pode imaginar – aqui no Brasil, a animação dos anos 1990 foi veiculada durante um bom tempo na falecida Fox Kids.
Falando em falecida, Angela e Luciana, infelizmente, já se foram faz um bom tempo: a primeira em 1987, e a segunda, após continuar o legado da irmã por quase 15 anos, se foi em 2001. Entretanto, seu trabalho é indelével, e jamais será esquecido pelos fãs de quadrinhos. Que mulheres, meus amigos!
- Trabalhos de destaque: Diabolik (1962-)
Os Irmãos Tsuge
Da terra do sol nascente e seus colossais mercado e linhagem de mangás, nós temos a única dupla criativa que nunca, de fato, trabalhou junta, mas cujo estilo do irmão mais velho influenciou enormemente o trabalho do mais novo. Então, tá valendo!
Nós já chegamos a falar sobre os irmãos Yoshiharu e Tadao Tsuge no nosso Na Tela sobre a clássica publicação de mangás alternativos, a Revista Garo. Yoshiharu surgiu cedo, em 1955, no mercado dos mangás kashihon (os “mangás de aluguel”) e foi bem prolífico por um breve período. Porém, esse mercado implodiu repentinamente na virada desta década e, deprimido, o autor saiu de cena. Quem o resgatou do ostracismo foi o editor Katsuichi Nagai, o grande responsável pelo caráter avant-garde da Garo, e que via no Tsuge mais velho um artista perfeito para servir de carro-chefe para a sua publicação. Uma dedução que não podia ser mais acertada.
Yoshiharu Tsuge não apenas revolucionou seu próprio estilo, como também revolucionou a maneira como se pensava e se fazia mangá. Seu estilo, profundamente influenciado por sua visão depressiva do mundo e de sua própria vida, transitava entre o realismo cru e um onirismo muitas vezes delirante. Seus mangás chamavam a atenção porque não se preocupavam, nem remotamente, em agradar os leitores – muitos finais eram ambíguos e anti-climáticos. Mas isso não importava. Yoshiharu estava dedicado a criar mangás como ninguém nunca havia feito antes – foram os seus trabalhos que importaram a expressão Watakushi, que designa narrativas de aspecto autobiográfico, subjetivas e pessoais, da literatura japonesa para os mangás. E, publicando ativamente na Garo entre 1965 e 1987, os trabalhos deste autor foram de enorme influência para toda uma nova geração de mangakas inspirada na sua arte, impulsionada pelas oportunidades dadas por Nagai. Entre aqueles que sofreram sua influência, estava ninguém menos que seu irmão mais novo, Tadao.
Nascido em 1941, Tadao não começou a trabalhar com quadrinhos muito depois de seu irmão, seus primeiros trabalhos datam também do final da década de 1950. Mas não foi antes de seu irmão começar a revolucionar os mangás com seus trabalhos na Garo que Tadao também colocou suas asinhas de fora, demonstrando o seu talento. Embora nunca tenha atingido a envergadura do irmão, Tadao também publicou um número considerável de bons mangás durante a década de 1960 e nas seguintes; todos eles claramente inspirados pelo estilo watakushi do irmão, exclamando diversos aspectos e vicissitudes da vida japonesa do período, em histórias bastante pesadas que transitavam entre realismo e surrealismo.
A nota irônica fica pelo fato de que, apesar de ser reverenciado pelo trabalho revolucionário, os trabalhos de Yoshiharu são muito pouco conhecidos fora do Japão. Na verdade, mesmo por lá, não é fácil encontrar qualquer um que conheça seus mangás. Entretanto, Tadao teve sua obra de maior renome, Trash Market, publicada em inglês, tornando-se mais reconhecido pelo grande público mais recente do que seu irmão.
Esperamos que eles não se matem no jantar de Natal por causa disso.
- Trabalhos de destaque de Yoshiharu Tsuge: Nejishiki (1968); Taikutsu na Heya (1975); Muno no Hito (1987)
- Trabalhos de destaque de Tadao Tsuge: Trash Market (1968); Yoyu Yoyuruyakani (1970)
Os Irmãos Lieber
Você conhece Stanley Martin Lieber. E confia nele. Você provavelmente ama esse velho exibido e a sua vasta coleção de criações. Bem, talvez você não conheça Stantey, mas conhece Stan. Não conhece o Lieber, mas conhece o Lee. Sim, o primeiro, único, lendário – e por vezes meio picareta – idealizador do universo Marvel também figura nessa lista. Não vamos nos preocupar em dar uma biografia dele; é mais fácil esperar para fazer as devidas homenagens no inevitável obituário que se aproxima, afinal, esse highlander dos quadrinhos, nascido em 1922, está na ativa desde antes da Segunda Guerra. E, mesmo que fosse mais jovem, ter criado o universo de super-heróis mais popular da atualidade, junto com alguns dos maiores nomes da história da nona arte, já lhe serve muito bem como credencial.
Agora, o que pouca gente sabe é que seu irmão mais novo, tal qual muitos de seus heróis Marvel, foi seu sidekick durante um bom tempo na Casa das Ideias. Atendendo por Larry Lieber, ele fez muito mais do que se imagina – ou normalmente se lembra. Fato é que Larry não tem muito do que reclamar já que seu irmão mais velho lhe deu todo o apoio e oportunidades que alguém poderia esperar da família; especialmente, quando a mãe dos dois faleceu e Stan não apenas acolheu Larry como também o ajudou a arranjar um emprego. Incidentalmente, tal emprego foi justamente no mercado editorial, o que colaborou para Larry adquirir a experiência que lhe seria necessária em seus futuros anos na Marvel.
Larry, assim como seu irmão, dispunha de uma força de vontade e pró-atividade que compensavam a eventual falta de talento. Stan nunca foi nenhum fenômeno da escrita, e Larry nunca foi um fenômeno dos desenhos. Mas isso nunca importou para nenhum dos dois. Sabendo vender o seu peixe, Stan logo alcançou todas as glórias que bem conhecemos: capitaneou artistas vastamente talentosos com uma autoconfiança que talvez poucos seres humanos tenham, e ainda é a cara da Marvel para o mundo. Já Larry nunca se expôs desse jeito, mas isso não o impediu de trabalhar tanto quanto. Se você tem alguma dúvida disso, perca alguns minutos e vá conferir os créditos de criação dos personagens Marvel, e irá cair a ficha de que Larry está muito mais presente do que se imagina.
Basta dizer que o irmão mais novo criou, junto com o mais velho e outros artistas como Kirby e Ditko, três quintos dos Vingadores originais; Thor, Homem de Ferro e Homem-Formiga levam a assinatura do jovem Lieber. As contribuições para os dois primeiros são particularmente relevantes; na verdade, como Stan vivia sobrecarregado tendo que lidar com a Marvel inteira nas suas costas, não é exagero dizer que os textos dos personagens eram quase que exclusivamente seus.
Stan e Larry continuam por aí. A pergunta é: quando veremos um cameo de Larry no MCU? Alô, Marvel!
- Trabalhos de destaque de Stan Lee: Quarteto Fantástico #1-102 (1961-70; com Jack Kirby)
- Trabalhos de destaque de Larry Lieber: Journey into Mystery #83 (1962); Tales to Astonish #27 (1962); Tales of Suspense #39 (1963)
Os Irmãos Hernandez
Mais uma vez, vamos subverter nossos próprios critérios. Pois, não apenas os irmãos Mario, Gilbert e Jaime Hernandez não trabalharam juntos como, vocês podem observar, não se trata de uma dupla, mas sim, de um trio de irmãos. É um fato que nós poderíamos simplesmente mencionar Gilbert e Jaime, que tem uma produção vastamente mais prolífica do que a do irmão mais velho, mas justiça precisa ser feita, afinal, Mario pegou no pesado muitas vezes pelos caçulas. Explicamos.
Seis irmãos de ascendência mexicana, os jovens Hernandez eram incentivados pela mãe a ler muito. Independente do que fosse. Isso fez com que eles, desde cedo, já tivessem contato com o universo dos quadrinhos. A parte impressionante é que os irmãos Hernandez se tornaram tão apaixonados pela nona arte que começaram, desde cedo, a produzir suas próprias peças, colaborando uns com os outros para tirar as ideias da cabeça e colocá-las no papel. Sendo o irmão mais velho, nascido em 1953, Mario capitaneava a produção, aprendendo e incentivando os seus irmãos a evoluírem como quadrinistas. No entanto, a sina do irmão mais velho se manifestou, e, sem ter um exemplo como era para os seus caçulas, acabou abandonando o hobby em prol dos prazeres mundanos da juventude.
Quem continuou firme e forte nos quadrinhos foram os seus dois irmãos imediatamente mais novos: Gilbert, nascido em 1957, e Jaime, de 1959. Sua evolução foi colossal – ambos se tornaram artistas e narradores de enorme talento. Entretanto, seu diferencial não vinha apenas de seu talento; os irmãos foram criados na Califórnia dos anos 1960 e 1970, em plena efervescência de movimentos como a contracultura e o punk/hardcore. Sendo filhos de imigrantes, ele estavam mais próximos da realidade cotidiana das classes mais baixas do que das que frequentavam os estúdios de belas artes e artes de vanguarda. Isso foi determinante para que Gilbert e Jaime – inspirados tanto por artistas do mainstream dos quadrinhos que liam enquanto crianças quanto pelos artistas do underground que ganharam força na sua década de amadurecimento – conseguissem absorver o melhor que os talentos dos quadrinhos tinham a oferecer.
O ápice desse processo foi o lançamento da HQ Love & Rockets, em 1980, criada por Gilbert e Jaime, onde estes passaram a desfilar todo o seu talento. Desde o início, demonstravam alguns aspectos idiossincráticos. Embora a semelhança entre a arte dos dois fosse perceptível, consequência de sua colaboração e evolução conjunta durante toda a infância e adolescência como artistas, e influência mútua, é virtualmente impossível confundir os seus trabalhos. A própria narrativa denunciava isso: embora ambos demonstrassem agudas preocupações sociais, principalmente relacionadas a figura e a posição da mulher na sociedade, além da segregação étnica – influência das suas origens imigrantes –, a maneira como ambos abordavam isso era completamente distinta.
Enquanto os trabalhos de Gilbert evocam a tradição do realismo mágico latino-americano de forma mais explícita, as HQ’s de Jaime tinham um caráter mais extrapolado. Gilbert localizava as suas histórias na mítica cidade de Palomar – um nexo onde histórias típicas relacionadas ao ambiente e às sociedades latino-americanas poderiam acontecer concomitantemente, explorando as vicissitudes da realidade desses povos através de histórias muitas vezes simbólicas e metafóricas. Jaime já buscava outro caminho; suas críticas eram muito mais explícitas, assim como as suas histórias tinham um caráter muito mais extrapolado, abusando de elementos de ficção científica, como robôs, dinossauros e super-heróis. Suas histórias amadureceram e se tornaram mais sutis com o tempo, mas nunca deixaram para trás esse caráter mais absurdo que as de Gilbert.
Fato é que, para a Love & Rockets, isso era a melhor coisa que poderia acontecer já que, mesmo sendo irmãos, os Hernandez possuem estilos tão distintos que a revista acabava funcionando como uma das grandes antologias de quadrinhos alternativos que ainda faziam sucesso na época. De fato, a empreitada foi tão interessante que convenceu ninguém menos do que Mario, o mais velho, a voltar para o quadrinhos, mesmo que por um breve período: publicou 12 edições em sequência, antes de se pirulitar novamente. Com o passar das décadas, voltou a publicar eventualmente para a Love & Rockets, mas sem nunca ter atingido o patamar dos irmãos mais novos.
É duro ser o mais velho…
- Trabalhos de destaque: Love & Rockets (1980-)
Os Irmãos Buscema
Ok, bambinos, vamos falar sobre outros irmãos que se tornaram verdadeiras sumidades dos quadrinhos, quase sinônimos da nona arte: Giovanni Natale e Silvio. Ma che? Vai dizer que não conhece? Talvez devêssemos apresentá-los então pelos seus nomes artísticos: John e Sal Buscema.
Vocês não achavam que faríamos uma lista de irmãos quadrinistas sem falar dos Buscema, certo? Molto bene, bellos, então vamos dar uma breve biografia desses gigantes. John nasceu em Nova York, em 1927, filho de pais italianos (AH VÁ) e cresceu fascinado pelas histórias em quadrinhos de heróis pulp e de ficção científica que bombavam na época; o que significa que ele esteve sob influência direta de clássicos como Príncipe Valente, de Hal Foster, Tarzan, de Burne Hogarth, Flash Gordon, de Alex Raymond, Terry e os Piratas, de Milton Cannif, entre outros. Como o amigo leitor pode ver, somente os velhos titãs que caminhavam sobre a Terra naquele período. Como as tais referências, não à toa, John iria direto e reto para a Escola de Artes de Manhattan.
Como todo mundo, o começo foi difícil, mas um talento como o de John dificilmente permaneceria escondido. Realizando pequenos trabalhos para jornais e revistas de menor expressão da cidade, sua vida deu uma guinada definitiva em direção aos quadrinhos quando, em 1948, conheceu um certo senhor Lee, de quem falamos ali em cima, quando esse era editor da Timely Comics, embrião da futura Marvel. Ali, a sua arte ganhou uma senhora sofisticação, já que o ainda jovem John pôde trabalhar e ver de perto o lápis de gente do naipe de Gene Colan, Carl Burgos e Mike Sekowsky. Assim fica fácil, né?
Durante os anos 1950, John desenhou os gêneros que estavam na moda antes e depois da bobagem do Comics Code Authority, incluindo histórias de guerra, faroeste, ficção científica e suspense. Foi apenas nos anos 1960, quando surgiu a Marvel, que ele caiu de cabeça nos super-heróis. Na Marvel, ele se tornou não apenas colega, mas também referência para praticamente todo desenhista do lugar – era o único cara mais “jovem” ali tão respeitado quanto os deuses Kirby e Ditko. Sua envergadura inspirava muitos desenhistas. Incluindo o seu irmão mais novo, Sal, que foi arrastado por John para a Marvel em 1961.
A trajetória de Sal, dez anos mais novo, é bastante similar a de John até a sua formação, que ocorreu na mesma escola de artes onde seu irmão mais velho se formou. A partir dali, durante toda a década de 1950, Sal teve experiências bastante distintas: ele nunca se aproximou dos quadrinhos, vivendo basicamente de ilustrações de publicidade, até ser contratado como ilustrador do exército, desenhando materiais motivacionais e de treinamento, entre outros. Foi só quando recebeu a fatídica ligação de seu irmão, já na década de 1960, que as coisas viraram de ponta cabeça. O talento de Sal é incontestável, mas na época havia uma dúvida: Stan Lee já havia instituído, desde o início, o draconiano método Marvel de produzir quadrinhos, o que exigia de todos, inclusive desenhistas, uma velocidade quase sobrenatural de produção. O próprio Sal Buscema comenta, em diversas entrevistas, que era como se ele tivesse “reaprendido” a desenhar, devido à diferença de ritmo entre os seus trabalhos anteriores e a Marvel.
Dessa forma, Sal acabou funcionando como sidekick de seu irmão mais velho durante um bom tempo, já que esse praticamente exigia seu caçula como arte-finalista da maior parte de seus trabalhos. E esse duo produziu alguns trabalhos hoje reverenciados; em particular, o Surfista Prateado de John, considerado uma verdadeira obra-prima. A partir dos anos 1970, Sal se firmou como uma das pratas da casa, e passou a ser desenhista de alguns títulos importantes, enquanto John embarcou em um projeto que se tornaria um marco na história dos quadrinhos – substitui Barry Smith em Conan, escrito por Roy Thomas.
Em termos de estilo, não há nenhum segredo aqui. Embora, objetivamente, John sempre tenha sido melhor desenhista que Sal, estamos falando de uma barra bem alta. O estilo de Sal é mais fluido e mais flexível – ele é capaz de desenhar qualquer tipo de história e imprimir o ritmo necessário, utilizando-se de perspectivas mais realistas. Já John não fazia concessões. Seu estilo era bombástico, inigualavelmente épico. Cada página virada era um soco de nanquim na cara do leitor. Não à toa foi o escolhido para assumir Conan; o trabalho do então jovem Smith era apoteótico, e a Marvel não incumbiria ninguém que não fosse o melhor para fazê-lo.
John, infelizmente, deixou esse mundo em 2002; foi enterrado com a sua caneta favorita em mãos (eu não estou chorando, você está chorando); mas deixou para trás um mundo de aventuras épicas que jamais será esquecido. Você pode aprender como desenhar o método Marvel como ele nesse vídeo aqui. Sal ainda está por aí – completou 82 páginas de vida em janeiro de 2018. Embora já não produza como antes, é uma verdadeira lenda viva. Ah, um detalhe – uma das netas de John, Stephanie, também se tornou ilustradora e cartunista. Alguém ponha um super-herói nas mãos dela, por favor?
- Trabalhos de destaque de John Buscema: Surfista Prateado, Vol. 1 #1-18 (1968 (desenhou 17 das edições; com Stan Lee)); Conan, Vol. 1 #25 (1973) – #190 (1987; com Roy Thomas)
- Trabalhos de destaque de Sal Buscema: O Incrível Hulk, Vol. 1 #194 (1975; com Len Wein) – #309 (1985; com Bill Mantlo)
Os Irmãos Luna
Indo para os membros mais jovens dessa galeria, os irmãos Jonathan e Joshua Luna representam não apenas uma nova geração de irmãos dos quadrinhos, mas uma própria nova geração dos quadrinhos em si. Nascidos em 1978 e 1981, respectivamente, Jonathan e Joshua, filhos de imigrantes filipinos, são filhos da Vertigo e da Image pós-Robert Kirkman – algo explicitamente denunciado pela dupla não apenas verbalmente, mas pela própria abordagem de ambos em relação aos quadrinhos. Suas histórias abordam, normalmente, protagonistas femininas em posições de poder ou sendo desafiadas por ele; muitos críticos e leitores celebram o fato de suas personagens serem orgânicas, cujo feminismo flui naturalmente, sem nem tons panfletários, tampouco os equívocos habituais de personagens nesses termos quando escritas por homens.
Ultra, por exemplo, uma de suas histórias criadas mais benquistas pelo público, trata de uma abordagem super-heróica da linhagem reconstrucionista, quase busiekiana, mas com um foco estendido sobre a protagonista que, mesmo sendo uma questão de escolha, não se vê nos heróis do autor de Astro City. A super-heroína, Pearl Penalosa, é uma grande metáfora crítica dos autores para os sofrimentos impostos às mulheres por uma sociedade de consumo superficialista, que objetifica e expõe o gênero. Com desenhos limpos, e mais próximos do fotorrealismo que se tornou moda nas últimas duas décadas, mas que não significa em absoluto uma crítica à qualidade da arte, do mais alto nível, os Luna constróem uma história relevante de super-heróis após Busiek, Morrison e Ellis – e isso não é pouca coisa.
Mas, se a trama acima parece um tanto clichê revisionista, sem problemas. Os Luna demonstram versatilidade ao trabalhar o mesmo tema em outra de suas HQ’s mais louvadas: Girls. Abandonando o gênero super-heróico, dando uma guinada em direção à ficção científica, Girls trata de um bizarro evento envolvendo uma misteriosa mulher encontrada, ferida e nua, por um sujeito chamado Ethan Daniels. Apesar da situação, Ethan não se refreia e acaba fazendo sexo com a misteriosa mulher. A partir daí, a mulher em questão coloca ovos que geram versões idênticas dela mesma. Essas mulheres atacam outras mulheres, mas tem um estranho interesse no gênero masculino. Uma macabra analogia dos conflitos de gênero oriundos de comportamentos inerentemente machistas da sociedade, Girls trata de questões atuais sem deixar de lado um bom entretenimento, demonstrando todo o talento dos irmãos filipino-americanos.
Inicialmente, Jonathan e Joshua compartilhavam as tarefas criativas. Com o passar do tempo, Jonathan acabou se firmando como escritor, enquanto Joshua desenvolveu o talento com o lápis. E, de fato, a harmonia entre os dois parece funcionar muito bem, pois, desde então, surgiram essas belas obras citadas acima, entre outras. Felizmente, o cenário atual é bastante propício para a produção autoral, então não precisamos nos preocupar muito em vermos os Luna sendo cooptados pelas grandes editoras de super-heróis para serem mão-de-obra nas enfadonhas mega-sagas das mesmas. Entretanto, pontualmente, é possível vê-los trabalhando com os bons e velhos encapuzados, já que, como todos nós, eles também cresceram amando a pancadaria do pessoal de colante.
Quem sabe essa nova geração não tire novos amados super-heróis do lamaçal em que se meteram.
- Trabalhos de destaque dos irmãos Luna: Ultra #1-8 (2004-05); Girls #1-24 (2005-07); The Sword #1-24 (2007-10)
As Irmãs Wachowski
“Ei, elas são cineastas, não vale!” Vos equivocais, amigo leitor. Sim, as irmãs Wachowski, tornadas mundialmente famosas após o colossal sucesso da franquia Matrix, mas, por incrível que pareça, elas têm os pés muito mais fincados nos quadrinhos do que no cinema. Na verdade, seria mais justo dizer que ambas são “nerds totais”, porque já demonstraram interesse e conhecimento em praticamente todos os campos clássicos de nerdice, da literatura, passando por quadrinhos e cinema, chegando até os games.
Caso você não saiba, em meio a campanha viral de Matrix, que tomou o mundo de assombro e mudou a história do marketing e do cinema, além das animações estilo anime e dos games – que se tornaram mais famosos – houve, também, um grande número de publicações de quadrinhos, e que não duraram pouco, se estendendo de 1999 até 2005. Na época, ainda se identificando pelo gênero masculino, “os” Wachowski não apenas produziram e publicaram os quadrinhos de Matrix, como chegaram a escrever uma das edições, o que as qualifica para estarem nessa lista.
Talvez o amigo leitor ache que essa seja uma desculpa um tanto rarefeita. Pois bem, gotcha. Os quadrinhos de Matrix não são o único – sequer o maior – motivo para elas estarem aqui. Pois antes de começarem suas carreiras como cineastas, o primeiro emprego de Lana, então ainda atendendo por Laurence, no meio artístico foi como roteirista dos quadrinhos das criações de Clive Barker, Hellraiser e Ectokid, e isso não foi por pouco tempo, Laurence foi funcionário da Casa das ideias de 1989 até 1994. E, um fato curioso revelado por elas apenas muito tempo depois, é que, como na época eles pagavam as contas administrando um negócio de construção e pintura, apesar de Laurence ser o contratado da Marvel, Lilly, então ainda Andrew, colaborava com todos os roteiros. Olhe nos meus olhos e me diz se você não gostaria de ter um irmão assim, amigo leitor! Porque os dois irmãos deste colunista são uns completos inúteis (dificilmente eles vão ler isso aqui mesmo…).
Fato é que, desde o início de suas carreiras, as Wachowski sempre declararam ter como maior influência um quadrinista, e não inicialmente um cineasta específico. O quadrinista em questão é ninguém menos do que o ótimo J. Michael Straczynski, com quem viriam a trabalhar diretamente na série para a Netflix, Sense8. E mesmo como cineastas, elas nunca esconderam seu prazer pela nona arte; basta lembrar que, depois de Matrix, elas adaptaram V de Vingança, o clássico de Alan Moore e Dave Gibbons, e Speed Racer, baseado no mangá e anime Mach GoGoGo, de Tatsuo Yoshida. Ou seja, independente do que você possa achar desses filmes, essas moças têm quadrinhos na veia tanto – ou mais – do que qualquer um de nós.
Ah sim, eu imagino que você esteja esperando este colunista comentar o lance da transição de gênero delas. Pois bem: não, o fato de elas serem transgênero não torna nenhuma obra delas boa ou ruim. Eu particularmente – e isso é meio pesado – acho todos os filmes delas, com exceção do primeiro Matrix, de qualidade bastante questionável. E não, o fato de elas serem transgênero não implica na seleção delas para essa lista, que é estritamente baseada no fato de que essas pessoas compartilharam um útero e trabalham ou trabalharam com quadrinhos. Mas quer saber? Tanto melhor que podemos mencioná-las.
Como dissemos, logo nos primeiros parágrafos deste artigo, essa lista acabou saindo bastante diversa. E que bom que nós contamos com pessoas transgênero, porque são seres humanos, que existem e estão por aí, e merecem ser representados aqui como em qualquer outro lugar – melhor dizendo, todos os lugares. Que chato seria um mundo onde quadrinhos fossem apenas de super-heróis ou de ficção científica. Da mesma forma, que chato seria um mundo onde todos nós fôssemos iguais.
É isso. Não seja chato, e vá curtir um quadrinho!
- Trabalhos de destaque das irmãs Wachowski: Clive Barker’s Hellraiser #8–9, #12–13 e Hellraiser: Spring Slaughter – Razing Hell (1989-94); The Matrix Comics #1 (Bits and Pieces of Information; 1999); Doc Frankenstein (2004-)
Os Irmãos Moon e Bá
E para encerrar nossa lista de irmãos dos quadrinhos, nada melhor do que uma representação brazuca. E esse duo não deixa nada a desejar para ninguém. Aliás, dessa vez o combo vem completo: não são apenas brasileiros e irmãos, como também gêmeos, que decidiram trabalhar juntos com quadrinhos. É muita predestinação para um dupla só.
Fábio Moon e Gabriel Bá já estão na estrada há mais de 20 anos, mas também porque começaram relativamente cedo: nascidos em 1976, na capital paulista, começaram a distribuir seus quadrinhos em zines independentes logo após a faculdade. Mesmo que o sucesso não chegue fácil para ninguém, o gêmeos o alcançaram relativamente cedo; estavam na casa dos seus 20 anos quando o público tomou conhecimento de seu talento com a HQ 10 Pãezinhos, que catapultou Moon e Bá dos circuitos underground para os ciclos de quadrinistas autorais – quadrinho autoral que, incidentalmente, começou a ganhar cada vez mais força e reconhecimento na virada do novo milênio.
Em 10 Pãezinhos, os irmãos já demonstravam os pilares de seu estilo: contrastes fortes de nanquim, um explícito estudo em chiaroscuro, mas exibido com traços caricaturais e estilizados, típicos da escola chargista e de cartum do continente sul-americano. No entanto, o que realmente destaca as histórias de Moon e Bá é o seu conteúdo: profundamente reflexivo, normalmente trabalha temas cotidianos com metáforas e analogias singelas, o que torna os seus quadrinhos, paradoxalmente, de conteúdo complexo, mas de leitura acessível. Entre 2000-07, 10 Pãezinhos não apenas colaborou para a exposição dos trabalhos dos gêmeos, mas também para a elevação dos quadrinhos brasileiros a um novo patamar, inclusive de reconhecimento internacional.
Reconhecimento internacional este que os levou a entrar em contato e trabalhar com grandes nomes dos quadrinhos americanos. Até esse momento, Moon e Bá já produziram com nomes como Gerard Way, Matt Fraction e Mike Mignola. Não é pouca coisa. Ainda mais se pensarmos que, entre todos esses trabalhos, nenhum é considerado de qualidade mediana, pelo contrário. Os gêmeos paulistanos são praticamente um selo de garantia de qualidade em um quadrinho.
Mas, apesar da interação com os gringos, eles se destacam mesmo quando abraçam a sua brasilidade. As adaptações de O Alienista e Dois Irmãos são, hoje, extensivamente consideradas duas das melhores adaptações literárias já realizadas para os quadrinhos. É de se destacar, ainda, que Dois Irmãos não completou sequer três anos de lançamento, sendo de 2015, e já é colocada nessa prateleira. Não obstante, foi em 2010 que Moon e Bá atingiram o ápice de seu talento, quando publicaram Daytripper. Não precisamos comentar muito sobre ela aqui, já que dedicamos um Na Tela para essa HQ; mas basta dizer que – em que pese que prêmios não representam grande coisa – Daytripper tornou os gêmeos os primeiros brasileiros a vencer o Eisner, a maior premiação de quadrinhos dos EUA.
Moon e Bá continuam escrevendo e desenhando loucamente. Tanto melhor para nós. Eles inspiraram, e continuam inspirando, toda uma nova geração de quadrinistas brasileiros a se arriscarem na nona arte. Só podemos nos recostar na cadeira e desfrutar desse momento magnífico que vivemos nos quadrinhos autorais brazucas!
- Trabalho de destaque dos irmãos Moon e Bá: Daytripper #1-10 (2010); 10 Pãezinhos – O Girassol e a Lua (2000, Via Lettera); Meu Coração, Não Sei Por Quê (2001, Via Lettera); Crítica (2004, Devir), Mesa para Dois (2006, Devir); Fanzine (2007, Devir)
É isso aí, amigo leitor. Essa foi a nossa com irmãos dos quadrinhos! Gostou? Não deixe de compartilhar. Esquecemos alguma? Comente aí embaixo!
E, claro, não deixe de cobrar o seu irmão por ele ser um completo incompetente e nunca ter te ajudado a se tornar um astro dos quadrinhos!