O livro Laranja Mecânica permanece incomodamente atual
Uma das mais clássicas celeumas da filosofia política acerca da natureza da moralidade humana gira em torno de supostas qualidades inatas: Rousseau afirmava que o ser humano era inatamente bom, enquanto Hobbes pontuava o contrário. Claro que, em ambos os casos, isso era muito menos uma discussão metafísica e muito mais um meio argumentativo para um fim epistemológico, já que, apesar da divergência nas conclusões, o questionamento de ambos era muito similar: do que consiste a natureza humana em relação à moralidade, e, determinando isso, como nos devemos comportar como indivíduos em relação à sociedade e vice-versa. Desses debates, muitas inferências e extrapolações foram realizadas – a ficção científica e suas distopias são um terreno particularmente prolífico para isso. E das distopias que discutem a natureza moral do ser humano, Laranja Mecânica, do inglês Anthony Burgess, republicado aqui recentemente pela Aleph, talvez seja uma das mais conhecidas.
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Laranja Mecânica é essencialmente um livro que discute o livre-arbítrio diante da ideia de que não necessariamente boas escolhas serão feitas com ele, e o custo moral e social de se obrigar indivíduos a fazer as escolhas “corretas”. A trama conta, em primeira pessoa, a trajetória do adolescente Alex, um ser humano vil, desprezível – maniqueistamente maligno – que passa seus dias evitando deveres sociais, como a escola, para poder realizar atos de indizível maldade, como assassinatos, estupros, invasões, etc. Em determinado momento, um desses atos acaba interrompido por agentes da lei, e Alex é levado para a prisão. Não arrefecido seu comportamento brutal, a instituição decide submetê-lo a técnicas de “recondicionamento”. Agora avesso à violência, Alex passa a perceber a violência da própria sociedade à sua volta.
Um fato curioso sobre a relevância objetiva do questionamento proposto por Burgess: Laranja Mecânica foi publicado em 1962. Um ano depois, R.M. Hare, o renomado filósofo ético inglês, publicaria sua obra seminal Liberdade e Razão, um dos mais influentes textos filosóficos do século XX, que se propunha discutir um tema bastante caros aos textos distópicos de ficção científica – o texto aqui resenhado incluso. A investigação de Hare refere-se à aparente antinomia entre liberdade e razão. A racionalidade parece ser uma restrição à liberdade, enquanto a liberdade parece ser incompatível com a racionalidade. Rejeitar a racionalidade para preservar a liberdade é a marca das teorias da ética subjetivista / emotivista. Rejeitar a liberdade de enfatizar a racionalidade pertence às teorias naturalistas / descritivistas.
Malignas liberdades
É nesse cisma que a obra de Burgess se encontra. Mais do que uma obra amoral, Laranja estabelece que a bondade e a civilidade podem não ser necessariamente uma escolha – podem ser uma indução que, no geral, é benéfica para a sociedade. Entretanto, para chegar a isso, a liberdade de escolha é completamente suprimida, o que impõe um difícil dilema moral: deveria-se permitir que Alex continuasse a ser uma criatura hedionda, restringindo não seu poder de escolha, mas sua liberdade física em si?
Não obstante, antes de tomar uma posição – algo relativamente fácil diante do contexto acima – é necessário observar duas ressalvas: primeiro, a supressão da liberdade de escolha não vem sem uma dose considerável do que é objetivamente tortura. Apesar de a chamada Técnica Ludovico ser apresentada como um método de recondicionamento e reeducação, observamos que se trata simplesmente de torturar um indivíduo até que ele acredite e se comporte da maneira que consideramos apropriada. Uma versão distópica de Pavlov – como se esse precisasse do adjetivo…
Segundo – aqui, com Burgess usando um brilhante pretexto narrativo, existe uma impactante mudança de perspectiva na trama, que não nos permite assumir maniqueísmos banais, a despeito da maldade de Alex. Como dissemos, a história é narrada em primeira pessoa por Alex. No primeiro ato, temos estabelecido o tipo de pessoa que ele é não pelos atos abjetos em si, mas pelas emoções do protagonista em relação à elas, transitando entre o tédio e um profundo prazer. No último ato, com ele recondicionado, passamos a ter noção do tipo de mundo que englobava a existência daquele maldoso adolescente: um lugar coletivamente não muito mais agradável como sociedade do que Alex era como indivíduo.
Paradigmas morais
O que nos leva de volta ao princípio filosófico social e político da distopia de Burgess: o ser humano é rousseauniano, bom mas corrompido, ou hobbesiano, mau mas forçado à civilidade? Não obstante, precede o pensamento de Hare na medida em que, para solucionar a antinomia observada por ele, o pensador propõe o que ele chama de prescritivismo, uma espécie de emenda ao emotivismo. Como os emotivistas, Hare acredita que o discurso moral não é principalmente informativo ou factual. Mas enquanto os emotivistas afirmam que a linguagem moral é principalmente destinada a expressar sentimentos ou influenciar o comportamento, Hare acredita que o propósito central do discurso moral é guiar o comportamento dizendo a alguém o que fazer. Seu principal objetivo é “prescrever” (recomendar) um determinado ato – fazer com que alguém realize esse ato ou expresse seus sentimentos e/ou atitudes pessoais.
Portanto, tanto o caos moral absoluto de Alex quanto seu recondicionamento forçado são atitudes reprováveis, por se submeterem a um escrutínio sectarista rudimentar, que acredita piamente que seu modus operandi é o correto: o indivíduo Alex destruindo e molestando toda a sociedade ao seu redor, e a sociedade e as instituições ao redor de Alex posteriormente destruindo e molestando o que ele é. Como uma boa distopia, Laranja Mecânica se dispõe muito mais a questionar do que a propôr respostas. E é por isso que, em tempos de individualismo exacerbado e “verdades” absolutas erigidas por maioria de votos, é um livro mais do que necessário.
Muito infelizmente, existe sempre algo de atemporal quando alguém se debruça sobre as lacunas dos ser moral humano.