Por Mike Mignola e Christopher Golden, Joe Golem e a Cidade Submersa serve apenas de mau exemplo literário
Poucos autores de quadrinhos atuais são tão marcantes quanto Mike Mignola. Criador da epopeia sobrenatural conhecida como Hellboy, o escritor/desenhista/roteirista tem um vasto currículo de várias obras de excelência autoral como B.P.D.P., Zombie Word: O Campeão dos Vermes, O Incrível Cabeça de Parafuso e Outros Objetos Curiosos, além de lidar com diversos outros personagens já conhecidos de grandes editoras como DC Comics e Marvel desde os anos 80. E com uma bibliografia tão invejável de mais de três décadas, ele se une ao escritor Christopher Golden para dar vida ao livro Joe Golem e a Cidade Submersa (Joe Golem and the Drowning City: An Illustrated Novel).
À sinopse: Cinquenta anos depois de uma inundação que deixou toda Nova York debaixo da água, acompanhamos a história de Molly McHugh, uma adolescente de 14 anos, que é criada como filha pelo velho Felix Orlov, conhecido como O Conjurador. Orlov vive de fazer contato com o mundo dos mortos para trazer algum conforto aos vivos, mas depois que uma sessão dá completamente errada, Molly acaba precisando da ajuda de Joe e do Sr. Church. Estes dois ocultistas não apenas sabem o que deve ser feito para que o mal não prevaleça como também têm uma luta de muitos anos com o Dr. Cocteau, um vilão que quer colocar as mãos num objeto poderoso para evocar seres longínquos.
Publicado em 2013 pelo Grupo Autêntica, sob o selo da Editora Gutenberg, o livro tem 270 páginas e se trata de uma obra ilustrada, com desenhos de Mike Mignola.
É terrível ver uma possibilidade desperdiçada e Joe Golem e a Cidade Submersa é um desses casos onde só serve para compreender o que não fazer num livro. A partir do ponto de vista de um Narrador-Consciente que acompanha a ótica de Molly, Christopher Golden, o autor, é deficitário ao não conseguir criar o mínimo de empatia da protagonista em sua relação com o leitor. Sua personagem é um poço vazio e raso de poucos acontecimentos repetidos a exaustão, enquanto destila incoerências narrativas num relacionamento, à princípio, amistoso com Joe, mas com toques sutis de tensão sexual. Aliás, seria injusto chamá-la apenas de desinteressante quando há todo um leque de personagens fracos que disputam este adjetivo. Tanto Felix Orlov, quanto Sr. Chuch e Joe sofrem de falta de substância e, como compensação, o autor Christopher Golden cria uma Nova York estranha, sem personalidade e com uma escrita nula ao falar conservadoramente da divisão de riqueza injusta e pobreza exacerbada, evidenciada após a inundação sofrida. Não há nada de especial em nenhum dos elementos apresentados, mesmo que todos sejam fantásticos em sua medida.
Tudo isto é somado à pressa do autor no desenvolvimento das relações. Molly é arredia e independente num momento para no capítulo seguinte ser insegura e amedrontada. Se numa página ela desconfia de Joe, poucas depois sente falta e pensa em como ele cuidava dela. O Sr. Church, como mentor intelectual dos protagonistas tem picos de sapiência, mas decresce violentamente em seguida, assim como as suas raras camadas são jogadas a esmo e sem impacto algum. Dr. Cocteau consegue trazer um tom inicialmente mais interessante à dicotomia, mas logo em seguida reflete o clichê da vilania ruim: sorrisos maléficos, instabilidade mental previsivelmente errática e irrisória, planos do mal sem muito sentido dentro do contexto da história.
Mas o pior dos personagens é focado em Joe. Seu coprotagonismo é opaco, sem nenhum tipo de vida, o que o reduz a uma força bruta. O único drama do personagem, o mistério em torno de sua origem, perde qualquer força pelo simples fato de que o título entrega já de cara. Se o nome da história é Joe GOLEM e a Cidade Submersa, deduz-se, naturalmente, que Joe é um Golem (Sem palmas, por favor). Golens são seres de pedra ou barro que, segundo as lendas, vêm à vida com um processo divino e têm a função de proteger. Ao direcionar a narrativa muito mais no “mistério” de quem é Joe e sua origem, a história se torna pura enrolação dada a quantidade de páginas (mais da metade do livro) para ter resolução.
Assim, fica claro que Golden planejava jogar no seguro com personagens típicos de dinâmica grupo: O mentor, o forte, a esperta, o vilão clássico, a vítima que precisa ser salva. O grande problema reside na dificuldade de qualquer tipo de desenvolvimento minimamente palatável. Fruto diretamente das escolhas narratológicas do autor, que aposta muito mais num clima que emula as histórias de Mike Mignola do que em criar características próprias e, desta forma, tornar a obra mais independente da cópia deste universo. É possível reconhecer Hellboy na figura pseudomítica de Joe – ainda que o mesmo esteja fisicamente exatamente como outro personagem de Mignola: Roger, o Homúnculo –, assim como o Prof. Bloom em Sr. Church. Há um Q de Rasputin em Dr. Cocteau e as citações às bruxas remetem diretamente a conceitos de Baba Yaga, uma entidade que Hellboy enfrentou diversas vezes pelos anos. Seria até uma boa paródia dos originais, se não fossem tão ruins.
Aliás, a limitação estrutural de Joe Golem e a Cidade Submersa impede qualquer tipo de Exegese da obra. Nada há o que se extrair ou se aproveitar quanto literatura. Tudo é tão feito a toque de caixa que a análise do tema é impossível, partindo de raros pressupostos, mas estagnando na pequenez narrativa. Por isso vale-se aqui tanto de pleonasmos quanto de alongamentos textuais despropositados. A mais absoluta falta de direcionamento dá o tom. Sequer as ilustrações de Mignola trazem algum tipo de conforto diante disto tudo.
Portanto, se a exegese é ofensivamente esvaziada, uma tentativa de analisar a Estética da obra desmorona. Inacreditavelmente, Christopher Golden mata qualquer proposta de dar um significado trabalhado às palavras, enquanto tenta ser Mignola e faltando com personalidade própria apenas para encher páginas de um livro com imprevisibilidades. Veja bem: Há diferenças entre trabalhar a aleatoriedade quanto elemento literário e usá-la de subterfúgio pela falta de escopo. E este é o caso desta obra.
Tom problemático combinado com literatura ruim
Como se não bastasse, não há decisão no tom que o livro quer ter. Ora é tratado como aventura, ora como ação, ora como terror, ora como horror cósmico, ora como drama, ora como um steampunk. Quanto a este último ponto, é preciso ressaltar que Mike Mignola sabe retratar o salto-evolutivo-tecnológico-vintage-científico como poucos, mas a conjuntura que converge nas páginas torna o gênero, na falta de um conceito melhor, quase dispensável.
Mas para não dizer que tudo aqui é imprestável, o Clímax, apesar de errático e também altamente descritivo e enrolado, torna a história um pouco mais interessante por um breve momento, mas esperar tanto por algo um pouco melhor do que todo o resto, que é execrável, não compensa rigorosamente nada.
Isto posto, Joe Golem e a Cidade Submersa é um livro terrivelmente fraco, sem acertar nos temas que propõe, ao mesmo tempo que entrega personagens ruins e incompletos. São 270 páginas que custam a passar com uma história péssima e que desanima a leitura. Isto não é literatura, mas uma versão-beta e negativamente crua de si mesma que jamais será capaz de fazer jus ao legado de Mike Mignola, ou a qualquer outra coisa.