Carmilla, um marco do vampirismo na literatura
Difícil encontrar algum ser humano que nunca tenha ouvido falar em Drácula, certo? Independente do quanto essa pessoa tenha interesse no mito do vampiro, a imagem do personagem de Bram Stoker criou raízes no imaginário popular. Claro que isso também se deve à avalanche de adaptações que a obra ganhou em mais de um século após sua estreia. Só que o famoso conde poderia não ter existido sem a influência de uma certa Carmilla.
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A novela criada pelo irlandês Sheridan Le Fanu teve seu primeiro capítulo publicado em 1871, mais de vinte anos antes de Drácula. Não apenas um marco da literatura gótica, Carmilla influenciou os rumos que a literatura vampírica seguiria a partir de então, inclusive no que diz respeito ao teor sexual que várias interpretações do mito trariam depois. Aliás, ainda que seja bem menos conhecida que o vampiro de Stoker, ela também ganhou inúmeras adaptações para o cinema.
Narrada em primeira pessoa por Laura, aos 19 anos e morando com o pai e duas governantas em um castelo na Estíria, a história cobre o encontro da moça com a misteriosa personagem-título. Ao testemunharem um acidente de carruagem, pai e filha se prestam a ajudar. Acabam hospedando uma estranha jovem em estado de letargia, enquanto sua suposta mãe segue viagem por conta de uma obrigação urgente sobre a qual não revela detalhes.
Abrigar Carmilla em sua residência parecia uma benção para Laura. Morando em um local isolado, ela esperava como hóspede a sobrinha do General Spielsdorf, que já avisara por carta que um grave infortúnio havia inviabilizado a visita. A presença de outra jovem, inexplicavelmente vista em um sonho anos antes, satisfaz a ânsia por companhia e cria laços fortíssimos de atração entre as duas.
Descrita como extremamente bela e lânguida, a recém chegada cobre Laura de carícias e a confunde com seu comportamento estranho. Todo o mistério em torno desta presença, assim como desconfortos físicos e fraqueza da narradora, será resolvido na propriedade em ruínas dos Karnstein, uma dinastia amaldiçoada que já se julgava destruída.
Apesar da época, Le Fanu não se preocupou em ocultar esse forte componente lésbico que compõe a premissa. O tipo de atração que Carmilla exerce, sendo suas duas vítimas do sexo feminino dentro desta narrativa, tem uma conotação evidente e traz outros detalhes sutis. Por exemplo, o retrato do vampiro como um ser que zomba de convenções sociais, o que fazia sentido em um momento repressor como o século XIX.
As características mais famosas destes sanguessugas, como a capacidade de se transformarem em morcegos e a luz do sol como fraqueza, não aparecem aqui. Por outro lado, um ponto bastante difundido posteriormente em outras histórias já estava, como a impossibilidade de um vampiro entrar em um lar sem que seja convidado. Este, aliás, um dos mais interessantes se tomarmos essas criaturas como construções arquetípicas do inconsciente coletivo.
(Falando em vampiros, confira também a resenha do clássico de Richard Matheson, Eu Sou a Lenda)
Os vampiros em diferentes culturas
Falando nas diferentes versões que diversos folclores e mitologias apresentaram, a edição da editora Hedra de Carmilla – A Vampira de Karnstein traz um ótimo bônus. O prefácio aborda várias dessas lendas e ainda oferece um excelente ponto de partida para quem quiser se aprofundar no tema. Especula, inclusive, de onde viria essa associação com os morcegos, apesar de antes haver uma relação próxima com gatos.
Como não poderia deixar de ser, o capítulo supostamente excluído do livro de Bram Stoker, O Convidado de Drácula, também é citado no texto introdutório. Considera-se a hipótese de que o tal trecho teria sido realmente criado para funcionar isoladamente. A ideia ganha força pela estrutura narrativa diferente do resto do romance, mas o fato que importa é a semelhança com a novela de Le Fanu, servindo como testemunho da influência de um sobre o outro.
É uma pena que Carmilla – A Vampira de Karnstein seja tão curto. Não é preciso muito mais do que um par de horas para devorar a edição, o que acaba deixando o leitor mais instigado por outras obras do gênero. Leia, procure as versões cinematográficas (como a ousada trilogia da Hammer, iniciada em 1970 com The Vampire Lovers, ou o clássico livremente inspirado no texto, O Vampiro) e pense no quanto a literatura fantástica deve a um trabalho como esse.