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Eu Sou A Lenda – A angústia da verdadeira solidão!

A relevância de Eu Sou A Lenda se mantém pelas décadas

Em primeiro lugar, se sua única referência de Eu Sou A Lenda (I Am Legend) é a produção cinematográfica de 2007 com Will Smith, tente deixar essa lembrança de lado ao ler o texto a seguir. Sem entrar em considerações sobre o valor do filme em si, são coisas bastante diferentes, apesar de partirem da mesma premissa. Levando em consideração que o livro foi publicado originalmente em 1954 e levado ao cinema duas vezes antes (1964 e 71), é válido supor – para quem ainda não o leu – que essa narrativa ainda mantém algum peso mais de cinco décadas depois. Mais do que isso… Agora, deixemos o cinema de lado.

(Assista depois ao nosso vídeo sobre o livro e a outros, onde falamos de vampiros diferentes na Sétima Arte: Martin, Deixa Ela Entrar e Sede de Sangue).

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Eu Sou A Lenda

Em 1976, Robert Neville, um homem comum de classe média, é o único ser humano imune em meio a uma epidemia que transformou a humanidade em vampiros. Fazendo de sua casa uma fortaleza contra essas feras, ele procura provisões durante o dia, quando esses seres entram em um estado comatoso como os sanguessugas das lendas, ficando completamente indefesos. É nestes momentos que Neville pode se dedicar a matar os que consegue encontrar, algo que faz exatamente como indicado no folclore: estaca no peito. Entre a sobrevivência e sua outra tarefa menos agradável, ainda sobra tempo e energia para procurar uma cura para a doença, forçando-o a tornar-se um cientista amador.

Richard Matheson (1926-2013) misturou o horror à ficção científica com sua justificativa para a epidemia e as consequências desta circunstância. Estava em sintonia com as preocupações da época, que tinham mais a ver com ciência do que sobrenatural. O prolífico autor destacou-se bastante neste segmento literário, além de escrever bastante para a TV, colaborando muito no Além da Imaginação original e em um episódio da Série Clássica de Star Trek, entre vários outros trabalhos. É oportuno lembrar também de seu roteiro para um telefilme de 1971, que mostrou o quão promissor era um jovem diretor chamado Steven Spielberg: Encurralado (Duel).

O grande mérito do texto de Matheson está não apenas na subversão do mito com esse vampirismo biológico, isso levando em conta a época na qual foi escrito. Ele sempre esteve ciente que histórias anteriores seriam lembradas, então assumiu as referências de Drácula (tema de um Formiga na Tela) e Robinson Crusoé, livros que são mencionados pelo seu atormentado protagonista com uma dose de ironia. Falando em Robert Neville, a verdadeira força de Eu Sou A Lenda está em preencher os espaços desta premissa com um drama bastante palpável. Neville não é um estereótipo durão norte-americano, mas um ser humano de verdade, sofrendo muito com a perda de sua esposa e filha pequena e levando a “vida” como pode naquela situação.

Richard Matheson, autor de Eu Sou A Lenda

Richard Matheson (1926 – 2013)

Os problemas do dia-a-dia também incluem as desagradáveis visitas dos vampiros, todas as noites gritando na porta de sua casa. Como não são totalmente irracionais, ainda guardam um tanto de sua consciência anterior, fato que constantemente nos é lembrado pelo personagem de Ben Cortman, amigo e vizinho infectado que atormenta nosso personagem principal gritando “Sai, Neville”, entre outras coisas. O cenário sempre têm como piorar, não?

No discurso indireto, o autor conseguiu passar todo esse drama de uma forma fluida, fazendo o leitor compartilhar as agruras de alguém a quem sobrou muito pouca opção. Existe ainda o questionamento moral sobre suas ações, ao matar essas pessoas durante seu “sono”, justificando que estaria fazendo um bem a eles enquanto não encontra a cura, além de Matheson permitir-se revelar os pensamentos de seu protagonista relacionados à sua abstinência sexual.

Evidente que entre o recheio da trama básica de Eu Sou A Lenda estão solidão e isolamento puro e simples, mas isso acaba ganhando mais peso e mais ressonância emocional e psicológica com uma situação em que não se está realmente sozinho, pelo menos no sentido pleno da palavra. Independente da época, qualquer ser humano que sente, ou já sentiu, algum grau de incompreensão ou inadequação, que enxergue uma inversão de valores promovida por uma maioria que vira seus conceitos de cabeça para baixo, encontrará algo familiar no sofrimento de Robert Neville, que até se expressa diretamente em relação a isso.

Eu Sou A Lenda no cinema

A partir da esquerda: Mortos que Matam (1964), A Última Esperança da Terra (1971) e Eu Sou A Lenda (2007).

Dizer que o livro de Richard Matheson é obrigatório, não apenas aos fãs de terror, é desnecessário depois das considerações acima. A Aleph ainda caprichou na reedição do clássico, entregando um projeto gráfico lindo com capa dura, ligeiramente menor que o padrão. Entre os extras, um ensaio muito interessante sobre os temas abordados na história e uma entrevista com o pai da matéria em pessoa, concedida na época do último filme. Voltando ao cinema, suas três adaptações (quatro, se contarmos um obscuro curta espanhol de 1967) valem algumas considerações, mas este é um assunto que rende outro artigo.

Neste momento, quem ainda não teve o prazer de lê-lo deve abandonar a leitura deste texto agora, pois cabem alguns aprofundamentos sobre essa obra singular que requerem comentários com spoilers pesados.

Comentários sobre Eu Sou A Lenda com SPOILERS!

Já leu o livro?

Não leu, porém não liga para spoiler? (olha lá, hein?)

Beleza! Vamos lá…

Longe de procurar denominadores definitivos para Eu Sou A Lenda, afirmando categoricamente que “isso significa X, Y ou Z”, a ideia aqui é abordar alguns pontos mais específicos do livro e procurar uma reflexão à luz dos dias atuais. O que parece mais evidente em uma primeira olhada é o peso que a Guerra Fria tem neste conjunto, onde o pós-apocalíptico característico da ficção científica se junta ao terror, mas a relevância não se limita a esse contexto histórico.

O vampirismo é uma ameaça biológica, portanto, ancorada em ciência, ao mesmo tempo que os infectados não saem ao sol, são repelidos pelo alho e têm medo da cruz. Essa última fraqueza não pode ser justificada biologicamente, então Matheson a explica como psicológica, a partir de uma percepção desta praga como o vampirismo notabilizado na obra de Bram Stoker, criada pelo próprio inconsciente coletivo.

Uma turba de bestas descerebradas que aceita uma crença medieval, ainda que inconscientemente… São doentes, é verdade, mas Matheson não deixou de citar uma reação dos cultos religiosos quando a epidemia ainda estava no início, algo relatado como bastante escandaloso e – evidentemente – ineficaz. De qualquer forma, quando falamos de turbas irracionais contra a Razão, aqui personificada por alguém tão fragilizado, o tema ainda parece muito atual. Hoje em dia nem precisa ter a ver com religião, inclusive!

Robert Neville é um caso singular de protagonista em Eu Sou A Lenda, ainda mais levando em conta o ano em que foi criado. Sua construção como ser humano falível, por isso mesmo tão crível, confere a ele uma complexidade rara na ficção, sobretudo por ser um livro relativamente curto. As dores do trauma de alguém que viu a esposa voltar da cova e finalmente fez “o que era preciso”, um episódio que nem é diretamente descrito, espertamente deixando a imaginação do leitor participar,  além do peso de lidar com a morte da filha criança, são apenas o começo dos problemas.

Fora o básico da trama, chama atenção o amadurecimento psicológico do personagem, quando a história tem seu hiato cronológico e o vemos cerca de três anos após o início do isolamento. Até então, ele já havia lutado contra impulsos mais primitivos ao resistir às vampiras insinuando-se em frente à sua casa, assim como a tentação de saciar-se com uma delas, então capturada por ele para testes da infecção. Ele se mantém firme e até chega a utilizar o termo “estupro” para o que poderia ter feito.

No entanto, Neville se nega a olhar para os vampiros como algo mais do que animais, mas – como descobrimos depois – era apenas uma forma de aliviar o sofrimento do seu dia-a-dia. Quando Ruth aparece, aparentemente saudável, a carência já diz respeito muito mais à mera convivência com outro ser humano, mas Neville já é sincero consigo mesmo o bastante para admitir que a teria violentado, caso fosse encontrada bem antes. É algo corajoso até para os padrões de hoje.

Na grande reviravolta descobrimos que existe uma nova sociedade, revelando pessoas que conseguiram deter o avanço da infecção e mantiveram – pelo menos – a sanidade, e a discussão da inversão do conceito de normalidade, baseada em maioria X minoria, se mostra o cerne do livro quando seu título é explicado. Sem prestar-se a lançar uma lição de moral pré-fabricada e vazia, não existe uma resposta direta para os atos do protagonista ao longo de seu martírio ou deste novo grupo que se apresenta.

A instituição deste governo provisório, que não sabemos a dimensão, faz uso de uma violência que se mostra um prazer, aplicada para exterminar os infectados em estágio avançado que tanto atormentaram Neville, a ponto deste chocar-se e encontrar, finalmente, alguma piedade por esses monstros que já foram pessoas. Assim, seu arco dramático praticamente se fecha, mas já não existe mais lugar para ele neste mundo. Ruth, a inimiga infiltrada, também teve sua evolução narrativa, mesmo aparecendo pouco.

Sobre a violência inerente – e supostamente necessária – à instituição das sociedades na intenção do bem comum, incluindo a execução de Robert Neville pelo crime de assassinar infectados, o princípio dos fins que justificam os meios é claro. No entanto, sua punição sensacionalista – por algo que eles também vinham fazendo com muito menos desconforto – indica que esta nova ordem ainda tem um longo caminho a percorrer, o que é irônico, já que nunca chegaram a regredir mentalmente. O caos justifica qualquer atitude bárbara, inclusive um governo que se insinua como autoritário, pelo pouco que vimos.

Neville, ainda que desequilibrado pela situação extrema, sempre foi ético. Sentiu tristeza, medo e ódio como qualquer pessoa, reagindo como era possível, mas conseguiu evoluir como ser humano neste caminho. Seus atos são compreensíveis nestas condições e a recompensa pela sua pureza, literal e figurada, é a morte. Para um coletivo desesperado em encontrar inimigos reconhecíveis e alimentar o medo das pessoas, Neville é o bode expiatório perfeito, mas a História recente nos ensina que depois que ele se for, algo ou alguém precisará ser posto em seu lugar. Sem atribuir maldade pura a esta maioria, já que também carrega sua cota considerável de sofrimento, e extrapolando o final do livro, talvez um dia eles possam perceber que é necessário olhar de outra forma para a lenda Robert Neville. Compreendendo isso, a consequência inevitável seria voltar esse olhar para eles mesmos.

Ainda existe mais a explorar nas entrelinhas de Eu Sou A Lenda, mas o ponto principal, a meu ver, foi alcançado. A jornada de Robert Neville continua relevante pelas suas questões éticas e a dimensão humana do personagem, com algo para qualquer pessoa refletir sobre si mesmo ou sobre o coletivo no qual vive. Poderia ser “apenas” uma excelente narrativa de terror, mas Richard Matheson nos deu bem mais do que isso.

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