Charlie Donlea torna A Garota do Lago uma ode ao nada com coisa alguma que leva a lugar nenhum
Charlie Donlea busca transformar o minimalista em algo tocante com A Garota do Lago. Mesmo que desconstruir personagens dentro de bons contextos seja válido, de que adianta tanto a explorar se há tão pouco a dizer?
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À sinopse: Becca Eckersley foi assassinada na cidadezinha bucólica de Summit Lake. Ela era bondosa, calma, com muitos amigos e sem motivo para sofrer um crime tão brutal. E é aí que entra a repórter Kelsey Castle para investigar o ocorrido. E enquanto descobre que algumas pessoas estão ansiosas para guardar segredos, ela também busca curar suas feridas de um trauma recente.
O livro, sendo contado por um Narrador-Observador, é dividido em dois núcleos narrativos não-lineares: o passado, com Becca e seus passos sendo contados até o assassinato e no presente temos Kelsey, a repórter que está investigando a morte da universitária.
Becca, como objeto de estudo do livro, traz uma boa dose de dúvida ao leitor, enquanto é desconstruída vagarosamente em suas nuances, mesmo sendo uma personagem vivaz e doce. Essa dicotomia entre qualidades e defeitos é bem dosada em parte do tempo, mas tem a força diminuída em muitas outras, tornando-a refém da visão reducionista de Charlie Donlea que a torna dependente da figura masculina e de uma narrativa maior do que realmente é. Apesar disso, Becca é, sim, funcional ainda que nem sempre de forma positiva, se tornando uma personagem que, infelizmente, acaba perdendo sua voz.
Já Kelsey é unidimensional, por mais que tente abraçar uma elegia pontual e conveniente a momentos da trama. Carregando um trauma semelhante ao de Becca, ela serve muito mais de âncora no presente do que uma representação de paralelo personalista. Kelsey até ensaia dizer algo, mas é constantemente emudecida pelo mesmo reducionismo que Donlea reserva para Becca. Ser uma vítima é dualista e tem seu peso, mas aqui ganha força apenas em cinco ou seis momentos que se perdem facilmente.
E é importante citar: O fato de Kelsey ter sofrido um crime horrendo automaticamente não a torna uma boa personagem. A questão aqui é a relevância procedural e não moral ou social. Protagonistas com grandes traumas trazem grandes responsabilidades narrativas, sejam estes femininos ou masculinos. Ou isso, ou corre-se o risco de ter algo raso em mãos. Não passar da segunda camada ao propor um tema tão delicado e sensível é frustrante, pois o tratamento é extremamente periférico. E no caso de Kelsey é ainda pior, já que o autor tenta mostrar que para essas coisas tão horrendas, apenas trabalho e um homem charmoso poderiam ser o início de uma resolução.
Os personagens coadjuvantes da história, que deveriam imergir o leitor ao orbitar o universo principal, em sua maioria são altamente protocolares. Dos colegas de Becca o que consegue mais tons de cinza é Brad. É ele quem agita parte da trama e isso fica claro inclusive nas suas conversas e atitudes na faculdade. Isto funciona e é um alento. Já Jack, que só serve para dizer “você está certa Becca”, e Gail, que é veementemente omitida da trama em vários momentos, só estão lá porque a história precisava de mais gente, mais diálogos inchados, mais capítulos e, por consequência, mais suspeitos.
Do núcleo que orbita Kelsey, no presente, o Dr. Peter Ambrose foi criado para dois fins. No primeiro, como interesse romântico, com direito à descrições elogiosas ao seu charme, vestimentas e afins. O segundo motivo é para servir convenientemente de auxiliar na investigação da repórter em tudo que envolva laudos médicos. Rae, a gerente do Café Millie é a personagem expositiva do leitor (ainda que todos os outros também tenham suas doses excessivas de didática). Também há nela a figura de alívio cômico, o que não é de todo mau. No caso do delegado Ferguson, há o claro caso de concessões literárias em prol da protagonista. Ele foi nitidamente criado para ser gatilho de roteirismos como permitir que apenas ela, enquanto jornalista, tenha todos os meios de ter o que precisa, inclusive invadir o local do crime com sua anuência.
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Da parte do autor há muitas facilitações sobre uma gama enorme de personagens dispostos a quebrar as éticas de seus empregos e vidas o tempo todo pelas protagonistas. É sempre problemático quando um livro busca muletas narrativas para facilitar a trama. Isso é flagrante intervencionismo do próprio autor que o faz. Tudo isso é somado às tentativas de causar sensações com frases de efeito ou no excesso de “mise-en-scènes” literárias (que se estendem por todo o livro). As cenas escritas buscam ser tão abusivamente descritivas e icônicas que parecem ser feitas já pensadas em uma adaptação. Muitas vezes, isso empobrece a trama.
Sua linguagem simples e com apenas discursos diretos em diálogos não cativa nem otimiza o prazer da leitura, não instiga e para nas próprias intenções devaneantes. Estas, aliás, me levam ao pior dos problemas do livro.
Todo thriller de suspense/mistério, em sua tese, procura brincar com as inferências dentro das inferências para seu público. Isso faz parte da proposta do gênero, como um jogo de spy vs spy onde vence o mais esperto e sagaz. A Garota do Lago se presta, por diversas vezes, a capar precocemente informações importantes, para que assim Charlie Donlea transforme-as em plot twists quando convier. Usar entrelinhas é promissor, ele mesmo o faz no início do livro, mas de resto, há clara supressão de informação utilizadas de maneiras apelativas para forçar uma surpresa.
Descrições demais, história de menos
Ao escolher ser narrativamente desonesto, o autor causa outros problemas: ser expositivo onde não precisa, limitar traumas de personagens, seus diálogos, lógica e atitudes. Também torna a história injusta com o investimento emocional do leitor, fazendo com que indique direções editadas e propositalmente erradas para que as “novidades” tenham mais peso. Consegue emburrecer conclusões lógicas como notícias que “quase ninguém” sabia e que eram de importância para o desenvolvimento do Conflito, mas que era amplamente divulgado conforme a trama desejava e omissões que tornam o desenvolvimento subestimável.
Isso sem contar o clímax aquém, praticamente inexistente e com uma falsa tensão de conflito final que só serve de sequel para uma recauchutagem do início do livro. Sim, Donlea repete, em seu final (descaradamente cntrl+c, cntrl+v), grande parte do texto que escreveu no Capítulo 1, quase acenando à esperança da incapacidade do leitor em entender sozinho o que realmente houve e ler a mesma coisa duas vezes. Seria ótimo, se não fosse uma maneira preguiçosa de desfecho.
Ainda assim, há de ser aplaudida a evidente autoindulgência da obra enquanto se esconde em raríssimos bons momentos e em uma capa já especificando que a obra se trata de “uma estreia (…)”. Se permitindo não apenas dizer que é uma obra amadora, mas também demonstrar que o é de uma forma exemplar.
Ao final das suas 296 páginas, A Garota do Lago se relega, sem pudor algum, a ser uma pseudotentativa de retratar traumas sérios e suas consequências complexas. Enquanto isso, mescla imagética cinematográfica superficial à uma dialética rasa, tornando-se dispensável em desenvolvimento, narrativa, mistérios significativos e personagens.
Absolutamente esquecível.