Um Woody Allen para uma nova geração
Woody Allen escreveu e dirigiu, desde 1969, 49 filmes. Desde 1977, o cineasta tem entregue pelo menos um filme por ano, com um número considerável deles sendo de qualidade acima da média. Essa quantidade de produção tem um custo: a fórmula se torna aparente, a repetição de temas começa a tomar conta e filmes que seriam bem recebidos podem sofrer com o cansaço e costume do mercado em ver aquele estilo ou ainda por fatores externos que não tem nada a ver com cinema. É nesse universo que surge Um Dia de Chuva em Nova York (A Rainy Day in New York).
Mesmo quando mergulha em outros gêneros (como em Match Point ou Casino Royale) a marca autoral do diretor permeia a obra: diálogos rápidos, cheios de psicoterapia e piadas sobre a cultura judaica, enquadramentos clássicos, romanticismo e observações esclarecidas sobre a condição humana. Seu sarcasmo ácido é à custa de personagens que não enxergam seus defeitos e o herói. ou vilão. geralmente encarna algum tipo de versão do mesmo personagem: inseguro, intelectual,neurótico e constantemente duvidando de seus próprios atos.
Mesmo com uma fórmula testada e aprovada, o Sr. Allen, com 83 anos, não tem medo de experimentar e se reinventar, mantendo o dedo no pulso do Zeitgeist cultural, continuando atual como cineasta por estar sempre criando. Um dia de chuva em Nova York é uma tentativa clara de criar um novo tipo de “filme de Woody Allen”, que enxerga sua posição em um mundo de filmes de super-heróis e bonecas possuídas. Um longa que possui aquele “Je ne sais quoi” que causa uma sensação de bem-estar e esperança.
Planos românticos para o fim-de-semana
A trama do filme é simples: Gatsby Welles (Timothée Chalamet, de Me Chame Pelo Seu Nome) e sua namorada, Ashleigh Enright (Elle Fanning, de O Estranho Que Nós Amamos) decidem passar o fim-de-semana em Manhattan para que a garota possa entrevistar o diretor de cinema Roland Pollard (Liev Shreiber) para o jornal da faculdade. Cheios de planos românticos, tudo começa a dar errado quando Ashleigh mergulha no mundo do cinema, saindo para festas, conhecendo atores famosos e redescobrindo sua persona…e deixando Gatsby sozinho para encontrar Shannon (Selena Gomez), a irmã mais nova de sua ex-namorada, com quem passa o tempo questionando sua vida e decisões.
Jude Law e Liev Shreiber são excelentes em suas participações e dão uma estrutura necessária ao filme. Mas o roteiro é dos personagens mais jovens, com destaque para Elle Fanning, que brilha em uma das melhores personagens de sua carreira até agora. O Sr. Allen consegue captar uma doçura apaixonante em seu olhar e sorriso que poucos diretores atingem. Em um diálogo de Ashleigh com o “famoso ator bonitão” Francisco Vega (interpretado por Diego Luna), enquanto ela confessa que ao tomar muito vinho se solta e fica feroz, é possível perceber um domínio de cena exemplar da atriz. Timothée Chalamet tem seus momentos de piadas afiadas e entrega um carisma contido, mas contagiante. Selena Gomez,infelizmente, não acrescenta nada a sua personagem.
O diferencial desta obra em relação a outras do Sr. Allen é que esta é uma falsa comédia romântica, uma história sobre descobrir o que é importante para si mesmo, a transição para a vida adulta e se aceitar como realmente é.O roteiro entende e gosta de seus personagens, desejando-os um futuro promissor e cheio de felicidade, ao mesmo tempo que celebra seu cinismo e imperfeições.
Estudando a alma humana
Um Dia de Chuva em Nova York é um dos filmes mais autoconscientes de Allen, que mostra um quadro imenso dos Vingadores pintado à mão em preto-e-branco com uma ironia soberba. O cineasta que Ashleigh entrevista está numa crise criativa e tem que ser lembrado que seu trabalho nunca será para as massas. A nostalgia é um fator importante para Gatsby, que cita uma enxurrada de referências de filmes, música e livros, mas sob a ótica de uma geração mais nova, apaixonada pelo passado mas sem a intenção de ser pseudo intelectual ou hipster. Ashley pergunta a Gatsby “como você sabe todas essas coisas?”, ao que ele responde: “Eu leio, só não o que mandam ler na escola.”
As referências podem ser nostálgicas, mas a visão de mundo é atual. O dinheiro que Gatsby ganha no pôquer existe para ser gasto, “dinheiro que se ganha no pôquer nem é dinheiro de verdade”, os filmes de Roland “são ruins porque não tem nenhuma piada de privada decente”. A juventude anda de tênis e não resiste em transar com uma celebridade “para ter uma história para contar aos netos”. Allen tira sarro dos ricos e poderosos. Gatsby tem raiva de seu berço, até que tem uma revelação surpreendente sobre como sua família conseguiu tanto dinheiro muda tudo.
A fotografia de Vittorio Storaro é ótima, iluminando as cenas de Ashleigh com um suave sol em meio à chuva ou com a ternura da luz de velas. A trilha é deliciosa, cheia de jazz. Um dos pontos altos é a cena de Gatsby tocando uma rendição lindíssima de “Everything Happens to me”. O final é previsível, mas o próprio filme deixa no ar se isso é algo ruim. A fotografia escolhida para a cena final reforça que, apesar de parecer, essa não é uma comédia romântica.
Um dia de chuva em Nova York é mais um filme acima da média na carreira do Sr. Allen, fazendo o espectador sair do cinema com vontade de fumar um charuto em dia de chuva, ouvindo jazz em um bar com martínis bem secos. Ansioso desde já pelo próximo do diretor, Rifkin’s Festival, que estreia ano que vem e contará novamente com a parceria com Storaro.