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O Estranho Que Nós Amamos – Um obscuro sentimento chamado desejo!

O Estranho Que Nós Amamos é um remake do filme homônimo de 1971

Quarenta e seis anos depois de estrear nos cinemas, O Estranho Que Nós Amamos (The Beguiled) recebeu uma nova roupagem. Similares sob muitos aspectos, os dois filmes partem de um ponto idêntico e o momento histórico em que as tramas se desenvolvem é o mesmo. No entanto, há uma mudança de perspectiva: enquanto o longa de Don Siegel enxergava a situação dramática através de olhos masculinos, a nova empreitada de Sofia Coppola opta pela subjetividade feminina, uma escolha condizente com os discursos igualitários da contemporaneidade.

Crítica de O Estranho Que Nós Amamos

O Estranho Que Nós Amamos

Baseado no romance do escritor Thomas Cullinan, o roteiro adaptado pela própria Sofia conta a história de um grupo de mulheres vivendo juntas em uma única casa. Domesticamente isoladas em razão da Guerra Civil que atormentou os Estados Unidos na década de 1860, elas dividem suas tarefas e tentam harmonizar as obrigações de acordo com a faixa etária das residentes. Porém, a aparente paz do ambiente é perturbada quando a jovem Amy (Oona Laurence) decide abrigar o cabo McBurney (Colin Farrell, de O Lagosta) após encontrá-lo ferido no meio da floresta. O ineditismo dessa presença masculina suscitará desejos conflitantes entre as moradoras.

Nos primeiros minutos de O Estranho Que Nós Amamos, antes de revelar as figuras humanas de Amy e McBurney, Coppola nos mostra fragmentos da natureza. A mensagem é clara: pela próxima uma hora e meia, entraremos em contato com a lado primitivo do ser humano, especificamente, dos personagens que compõem a narrativa. Racionalizações e auto-controle serão deixados do lado de fora do palco. Neste, estarão presentes apenas os rompantes e as paixões d’alma, em uma deliciosa ironia cartesiana. A guerra, conflito no qual o Homem descobre os seus instintos mais elementares, transforma-se no fundo cênico perfeito para o surgimento do desejo sexual.

Aliás, é interessante perceber como a diretora usa recursos diferentes para criar esse paralelo entre a animalidade da guerra e a animalidade interna dos personagens. Em certos momentos, ela se apropria do som. Ao longo da narrativa, o espectador ouve barulhos de explosões e fortes batidas na porta. Em outro, quando a governanta da casa, Miss Martha (Nicole Kidman, de Lion – Uma Jornada Para Casa), decide ir falar com soldados abrigados do lado de fora, ela opta por nos mostrar a interação. Contudo, embora a guerra seja empregada simbolicamente, ela está razoavelmente distante. Coppola aparenta ter um interesse meramente análogo nela.

Crítica de O Estranho Que Nós Amamos

Essencialmente, sua atenção parece estar voltada para a dinâmica existente entre homens e mulheres e o que acontece quando estão “fechados” em um lugar. Para realizar esse estudo, o diretor de fotografia Phillipe Le Sourd trabalha com um iluminação suave em alguns planos externos, o que dá um caráter onírico ao ambiente, como se a casa estivesse suspensa da realidade circundante. Nesse sentido, os recorrentes planos gerais da residência, nos quais se torna evidente que só existe natureza ao redor, e as já mencionados explosões da guerra, deixando claro que o mundo dos homens e da vida em sociedade estão distantes, contribuem para essa impressão.

Já nas cenas internas, para refletir o desejo sexual dos personagens, ele usa as velas e as cores sóbrias adotadas pela direção de arte para criar um ambiente quente e charmoso, ao mesmo tempo que mantém uma iluminação por vezes fria, ressaltando a parcial vilania que habita todos os residentes. Contudo, nessas sequências que se desenrolam dentro da casa, são o ritmo lentamente enervante estabelecido pela montagem e as trocas de olhares entre os atores que dão o tom da narrativa. No filme, não há quase nenhum diálogo para explicitar um desejo ou uma sensação. Tudo é transmitido pela precisão performática do calibrado elenco.

Assim, é através dela que sabemos da repressão interior de Martha, algo que ela mesma se auto-impôs para poder cuidar daquelas que dependem da sua força; da necessidade sentida por Amy de uma figura paterna; do despertar sexual de Alice (Elle Fanning, de Demônio de Neon Mulheres do Século 20), da complexidade interior de Edwina (Kristen Dunst, vista recentemente em Estrelas Além do Tempo), a personagem mais fascinante da história e cuja timidez inicial é inversamente proporcional ao papel que passa a exercer; e a bondade e hostilidade que coabitam dentro de McBurney.

O filme só não recebeu cinco formigas porque, depois de um plot twist importante tanto do ponto de vista narrativo quanto simbólico, em que a estrutura hierárquica da casa é alterada, Coppola não consegue explorar satisfatoriamente essa mudança. Na janela de tempo que compreende o ponto de virada e o terceiro ato, os eventos são narrados apressadamente, passando a sensação de um potencial pobremente explorado. Felizmente, a diretora acerta o passo novamente nos momentos finais e finaliza o longa com um plano soberbo (o fato de Edwina não aparecer do lado das outras mulheres é significativo).

Crítica de O Estranho Que Nós Amamos

Feminismo ou antifeminismo?

Há muitas maneiras de se interpretar o conteúdo de O Estranho Que Nós Amamos. Ao fazer um remake do filme de 1971 em que a perspectiva muda de sexo, lançando – o justamente numa época marcada pelos discursos ideológicos de igualdade, Coppola, querendo ou não, entrega um depoimento representativo, uma espécie de panfleto feminista. Um elemento que também auxilia essa impressão é a própria natureza da história: mulheres presas em um lugar e impedidas de sair (embora a ideia de ficar em casa seja muito mais atrativa que ir lutar em uma guerra violenta).

Entretanto, ao retratar várias mulheres fazendo de tudo para atrair a atenção de um homem – o que vai na contramão daquilo que é apregoado pelo feminismo contemporâneo – e propondo um retrato no qual o coletivo de mulheres é muito mais vilanesco que o indivíduo masculino, Coppola fornece material para uma interpretação antifeminista. Seja como for, as duas visões são válidas. Mas eu prefiro enxergar da seguinte maneira: nos dias de hoje, a superficialidade da política nos condiciona a enxergar a arte através de polos opostos, nos cegando para a complexidade da experiência humana. Portanto, para mim, acima de tudo, O Estranhos Que Nós Amamos é sobre o desejo. Qualquer análise politicamente enviesada fica sob a responsabilidade daquele que a realiza.

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