Esplendor é celebração, interpretação e encarnação do cinema enquanto obra de arte
Segundo Gadamer, interpretar é o ato de “compreender o que fica de não dito quando se diz algo”. E por “dizer”, ele está implicando um espectro bem amplo: virtualmente qualquer coisa, qualquer forma, qualquer ideia que sejamos capazes de comunicar. Ele usa uma expressão muito bela para explicar um conceito hermenêutico um tanto árido: “fusão de horizontes”, onde a dialética da interpretação de duas perspectivas encontra um ponto em comum. Cinema é essencialmente uma forma de arte audiovisual. É? Ou seria esse um reducionismo tecnicista, que não abarca completamente o potencial de interpretação de uma forma de arte? Esse é o debate, conduzido de forma magnanimamente singela por Naomi Kawase em Esplendor, mais uma pérola do cinema japonês.
A sinopse não poderia ser mais simples – de fato, até um tanto piegas: Misako (Ayame Misaki) é uma audiodescritora de filmes para deficientes visuais. Ela pega um trabalho bastante difícil com um filme dramático, cheio de emoções intensas e muito simbolismo. Ela tem dificuldade de discernir o que deve e o que não deve ser narrado. Para dificultar ainda mais sua vida, um de seus críticos é Masaya Nakamori (Masatoshi Nagase), um ex-fotógrafo talentoso que agora amarga a perda gradual da visão. Juntos, irão redefinir suas perspectivas devida conforme estreitam suas relações.
A missão de Misako é essencialmente um “crime” hermenêutico; ela tem que reinterpretar a visão cinematográfica audiovisual para uma forma narrativa corrida. Entretanto, o que se pede dela não é apenas a descrição: ela tem que encontrar uma maneira de transmitir toda a densidade da obra para pessoas que são fisicamente incapazes de imergir no universo da obra conforme pretendido pelos seus criadores. De muitas formas, essa é uma posição precária: qualquer amigo leitor sabe que uma única cena de um grande filme pode obter múltiplas interpretações. Como você descreveria a cena do pião em “A Origem”? Ou o encerramento de “Crepúsculo dos Deuses”? Como você narraria “2001” para uma amigo deficiente visual? A tarefa de Misako parece mais fácil de ser explicada do que realizada.
O contraponto e encarnação dessa dificuldade é justamente Masaya. Afinal, estamos falando de um indivíduo cuja própria existência é definida – literalmente – pela sua visão de mundo. A fotografia nada mais é do que capturar uma janela do tempo e expressar, nesse microcosmo reduzido em uma eternizada fração de segundo, milhares de interpretações, sinais e significados. Para ele, uma única imagem representa um universo de memórias, linguagens e possibilidades. A perda da visão, para ele, é muito mais do que a perda de um sentido; é o completo isolamento do que – ao menos ele entende assim – é a sua única maneira de interpretar e compreender o mundo.
Quem sou eu, quem és tu?
De certa forma, não deixa de haver uma ironia nesta crítica: o amigo leitor está vendo, nada mais, do que uma parca tentativa deste colunista de tentar representar em palavras os sentimentos profundos despertados pelo filme. Pois saiba disso então: é impossível. Porque o grande trunfo e beleza da obra de Kawase – e o que, incidentalmente, define uma grande obra – está justamente nisso: uma infinitude de possibilidades de interpretação. O que o amigo leitor irá extrair da experiência do filme dirá muito mais sobre a si mesmo do que sobre o filme; mimetizando, de muitas formas, a própria refiguração dos personagens em cena. Kawase constrói personagens que possuem vida própria, sim, mas que não deixam de ser um espelho para o espectador.
Embora possa servir como uma metáfora para a arte em si, Esplendor não deixa de se calcar essencialmente na interpretação do que é o cinema. É até curiosa a composição metalinguística da narrativa feita pela diretora, já que todo o filme gira em torno da interpretação do filme narrado por Misako: o processo de evolução dos conceitos de interpretação e compreensão da audiodescritora acompanham o processo de descoberta do espectador em relação à interpretação do filme em si. As duras críticas feitas por Masaya nada mais são do que a dura realidade de tentar estabelecer a interpretação mais apropriada partindo de um ponto de vista que é praticamente inacessível a alguém que não vive no mesmo mundo em que o outro vive.
A busca pela alteridade mais apropriada – a “fusão de horizontes” de Gadamer – é o verdadeiro âmago da obra, muito mais do que a relação afetiva desenvolvida pelos protagonistas, que é o que enxergamos – muito apropriadamente – na superfície da narrativa. Não obstante, fazendo jus a sua proposta simbólica e metafórica, Kawase dá uma verdadeira aula de composição de cenas, conduzindo a narrativa – uma certa ironia dramática – através de muitos elementos visuais. Todo a película, através uma magnífica fotografia – sem trocadilhos pretendidos – é permeada pela imagem do pôr-do-sol; a ideia de que existe enorme beleza nas coisas que se esvaem.
Kawase ainda insiste em conduzir, imageticamente, a ideia de que estamos imersos na dialética visual dos personagens – é enorme a quantidade de tempo em que a câmera acompanha, fixa, o olhar dos personagens. É particularmente bela a relação que a cineasta faz da perda da visão de Masaya com o pôr-do-sol, em mais de uma situação posicionando a iluminação poente apenas sobre os falhos olhos do fotógrafo. Mesmo Misako também se define pela perda – seu pai desapareceu e sua mãe sofre de demência, e todos esses símbolos de sua vida também são definidos pela luz alaranjada que se esvai no horizonte, levando consigo o que é, ao mesmo tempo em que assenta as possibilidades do porvir.
Esplendor pode sim ser interpretado como uma homenagem de Kawase ao poder do cinema como forma de arte – mas este colunista se permite assumir mais do que esse parco reducionismo. É uma obra que fala ao espectador de forma ostensiva, mas também íntima; que prima pela composição técnica, mas que dialoga de forma íntima. De muitas formas, Kawase prova em Esplendor que a comunicação, como a vida, sempre encontra um caminho. Que a escuridão apenas prenuncia uma nova alvorada. E ela apenas escolheu um horizonte específico, que todos podemos compartilhar, para nos mostrar isso.
O do tela branca diante de nós.