Clímax é uma angustiante descida ao abismo
Muitos diretores tem seus nomes associados a algum gênero e marcam a memória afetiva do público. Gaspar Noé não faz parte desse grupo. O diretor talvez seja o único a fazer a frente a Lars Von Trier em matéria de assustar o mundo do cinema a cada novo trabalho. Uma odiosa obra-prima é quase certa, assim como um trabalho perturbador e inesquecível. Assim é Clímax (Climax), filme que, ao contrário dos trabalhos anteriores de Noé, recebeu muitos elogios em uma das mostras paralelas do Festival de Cannes deste ano.
Embora Clímax não traga a violência gráfica explícita de Irreversível, Viagem Alucinante ou Love3D (2015), não espere sutileza ou algo menos angustiante e incômodo. A brutalidade aqui é psicológica e Noé se apresenta como um exímio artífice do terror ao içar o mal das profundezas sombrias de pessoas comuns em situações prosaicas. O diretor surpreende ao buscar algo mais conceitual e subjetivo para deixar sua assinatura, que não foge de expor os personagens ao mais absoluto sadismo.
A trama de Clímax é de tal simplicidade a ponto de quase nem poder ser chamada assim. Mas é justamente nessa singeleza que o diretor esconde seu poder, ao destacar que o caos pode vir de situações que passam longe da complexidade. Durante uma festa em uma escola de dança isolada por uma tempestade de neve, um grupo de alunos se esbalda em álcool, drogas, paqueras, fofocas e, é claro, muita dança. Trata-se de uma balada como tantas outras, até que alguém resolve adicionar LSD na sangria fartamente consumida por todos. Em pouco tempo, sob o efeito do alucinógeno, a loucura se instala e a noite de diversão se transforma, gradativamente, em um inferno.
Noé não economiza em recursos para fazer o espectador se sentir preso em um pesadelo. Reforça o jogos de luzes e sombras e movimentos de câmera para acentuar a sensação de claustrofobia dos personagens. Assim como em seus trabalhos anteriores, as cores têm papel fundamental, sobretudo o vermelho, tom caro ao diretor, sempre associado a perturbação mental. A iluminação e as cores são tão importantes que Noé assume, sem constrangimento, ter se baseado em Suspiria, clássico do terror psicodélico de Dario Argento, para compor a atmosfera.
Clímax poderia ser uma homenagem ao clássico setentista, que também tem a dança como pano de fundo de uma tortuosa viagem de medo e autodestruição, mas o trabalho de Noé é único e autoral. Além da fotografia, o som é fundamental da composição psicológica. Quase todas as cenas são acompanhadas por música eletrônica que, se no início complementa a diversão predominante na festa, logo se transforma em mais um componente de tortura quando o caos de instala. A música é quase uma personagem da obra, ganhando ainda mais importância quando está ausente ou ritmo muda.
Criação coletiva
Gaspar Noé gosta de dizer que Clímax é uma criação de todos. A produção de 90 minutos foi praticamente toda filmada em menos de 12 horas e em uma única locação. O roteiro trazia apenas referências para os acontecimentos. Diálogos e cenas foram, quase todos, criados pelo próprio elenco. Medida ousada e que ganha ainda mais interesse quando sabemos que se trata de atores não-profissionais. Com exceção de Sofia Boutella (Atômica, 2017), que interpreta o que mais perto se pode chegar de uma protagonista, todos os outros são dançarinos de profissão.
A aposta rendeu diálogos fantásticos e cenas memoráveis que são difíceis de crer que surgiram pelo puro talento do elenco. No entanto, o único detalhe que pode destoar nesse trabalho também vem desta opção do diretor. Ele investe longos minutos da primeira metade do filme em diálogos entre os personagens que têm o objetivo de aproximá-los da plateia antes do processo de desumanização. São necessários quase 50 minutos de conversas frugais e danças apoteóticas para Noé mostrar sua fúria contra a humanidade. As cenas deste primeiro ato não são ruins, mas o ritmo lento exige uma certa boa vontade do expectador não acostumado com o universo do diretor. Aliás, todos os filmes de Gaspar Noé devem ser assistidos com muito cuidado.
Clímax é mais uma estrela na carreira do diretor. Um filme memorável que deixará o público estático na cadeira e em silêncio por alguns minutos após os créditos finais. É um daqueles trabalhos que nos fazem refletir sobre a vida. O mal, a loucura e a destruição estão mais perto do que imaginamos, esperando apenas um estalo para virem à tona com todo vigor. Como nos lembra o diretor durante a projeção, a vida é uma desconstrução coletiva. Devemos pensar bem qual o nosso papel no caos se não quisermos ser sufocados por ele.