A persona social discutida em O Animal Cordial
A ideia do “Homem Cordial”, desenvolvida pelo historiador Sergio Buarque de Holanda, foi apresentada ao mundo em 1936, no livro Raízes do Brasil. Resumindo ao básico do básico, diz respeito às nossas atitudes do dia-a-dia para um convívio social aceitável, que nada mais seriam do que um disfarce. Com O Animal Cordial, Gabriela Amaral Almeida trabalha e extrapola esse conceito em um suspense transcorrido totalmente dentro de um restaurante, ao longo de enxutos 98 minutos.
Inácio (Murilo Benício) é o dono de um restaurante, cujo comportamento logo no início do filme nos deixa claro que se trata de um explorador. Sara (Luciana Paes, de 3% e Malasartes e o Duelo Com A Morte) trabalha na recepção e demonstra uma lealdade acima da média ao patrão. O chef Djair (Irandhir Santos, de Redemoinho e Aquarius) e o restante da cozinha têm uma relação tensa com Inácio. Isso piora em uma noite, quando há apenas um cliente sendo atendido (Ernani Moraes) e, faltando quinze minutos para o fechamento, aparece um casal espalhafatoso e inconveniente (Camila Morgado e Jiddu Pinheiro).
Entre tentativas frustradas de manter a frieza, não apenas por parte de Inácio, e novos pequenos conflitos, o ambiente é assaltado por uma dupla. Este é o incidente que vai manter o grupo inteiro confinado ali durante uma noite inteira, onde atitudes inesperadas vão ameaçar vidas, revelar noções de poder e criar desconfiança.
Graficamente violento e de linguagem pesada, O Animal Cordial se desenvolve bem para o tipo de história que pretende contar. O exagero nos atos de Inácio e Sara parecem calculados pela diretora, também roteirista do filme. É como se ela tivesse buscado dar vida a uma fantasia doentia de alguém perturbado e que não se importa com o dia seguinte, justificando comportamentos inconsequentes no decorrer de sua duração.
Não apenas isso, ela também se preocupou com os signos deste cenário que constroem este microcosmo. A narrativa se vale de elementos visuais que comunicam o interior dos personagens. Ou, pelo menos, como eles se enxergam em determinado momento. O mesmo recurso é explorado para enfatizar uma derrocada psicológica em direção a um desfecho que já se anuncia como trágico.
Conjunto coeso
A trilha sonora acompanha e reforça esse clima um tanto surreal, entrando rasgando em alguns momentos. A fotografia acerta no tom sombrio da história, além de destacar o vermelho. Este último detalhe, aliás, mais a temática pesada, mostra a influência de Mario Bava (Black Sabbath, Seis Mulheres Para o Assassino) no trabalho da diretora. Fã confessa do Maestro do Macabro, ela também bebe da fonte de John Carpenter. Conforme a narrativa avança, a incerteza sobre os personagens pode também lembrar algo de O Enigma de Outro Mundo, ainda que de uma forma distante.
Sobre as atuações, o elenco não decepciona . Destaque para Irandhir Santos, que precisou imprimir delicadeza na fala e nos gestos para compor o homossexual Djair. A escalação de Murilo Benício para o papel Inácio parece ter sido um caso pensado, já que a habitual inexpressividade do ator serve bem ao seu personagem. No geral, todos se esforçam e se saem bem até em planos mais longos, que testam a real capacidade dramática dos profissionais.
Falhas que não estragam a experiência
Gabriela Amaral Almeida se arriscou no cinema de gênero, iniciativa mais que bem vinda no Brasil (ouça nosso podcast sobre o assunto). Conduziu seu roteiro com segurança, mas pesou a mão em momentos específicos. Ao mostrar um dos personagens com uma expressão corporal selvagem, ela parece ceder a um tom didático, como se ninguém houvesse entendido sua intenção até ali.
Perto do final, ela também parece apressada demais para resolver a situação. São pecados que arranham algo de seu esforço autoral em um tipo de produção ainda pouco comum por aqui. Mesmo falhando em seu derradeiro ato, a finalização é digna e capaz de provocar reações variadas em sua plateia.
Muito melhor do que o badalado As Boas Maneiras, O Animal Cordial sacia muito bem quem busca um suspense pendendo para o terror. Regado a generosas doses de violência, por sinal. Tudo dentro de um contexto, é claro. Além disso, sua aproximação com a filosofia de Thomas Hobbes, com sua visão pessimista sobre as relações humanas, estimula e valoriza o debate além da pura diversão. No mínimo, é um interessante estudo de personagem.
Talvez até de auto avaliação para alguns espectadores…