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As Boas Maneiras – Um maravilhoso filme de gênero(s)!

As Boas Maneiras é uma joia preciosa da cinematografia brasileira

No Brasil, não é comum o investimento em gêneros (terror, ação, etc…), porque, além da falta de orçamento, há uma falta de interesse dos realizadores, normalmente optando por um cinema com viés mais autoral. Porém, a dupla de cineastas paulistas Marco Dutra e Juliana Rojas parece muito interessada em algo mais ousado. Mesmo já vindos de filmes de terror/suspense, o lado autoral dos dois é visível. Isso já estava em Trabalhar Cansa e nos longas solo de cada – Quando Eu Era Vivo (Dutra) e Sinfonia da Necrópole (Rojas). Porém, a dupla chega em um novo patamar com o seu novo trabalho, As Boas Maneiras.

Crítica de As Boas Maneiras

Arriscando-me na hipérbole, um perigo para qualquer crítico, afirmo que é um dos filmes mais ousados e um dos mais originais que vi em anos. É uma da provas que, desta nova geração de cineastas brasileiros, os dois merecem ser listados entre os mais interessantes e talentosos.

A história se passa em São Paulo e conta a história de Clara (Isabel Zuaa), uma enfermeira que mora na periferia e é contratada pela jovem Ana (Marjorie Estiano),  que precisa de uma babá para o filho prestes a nascer. Apesar de sua função, ela acaba se tornando companheira da patroa graças à sua formação em enfermagem. Apesar de suas diferenças sociais, elas acabam se tornando amigas e Clara vai percebendo alguns mistérios sobre sua patroa, envolvendo seu passado e a origem do bebê. Os transes em noites de lua cheia, quando anda pela casa atrás de carne, tornam a coisa toda mais estranha.

Além do argumento original, o roteiro assinado por Dutra e Rojas se mostra inteligente ao não subestimar o seu público. Não há grandes reviravoltas no longa, mas ele sabe quando dar alguma informação importante, que não estão ali para surpreender, mas para enriquecer o filme. Não servem apenas para esclarecer algo, mas para trazer mais coerência às ações dos personagens. Não há apenas a questão do mistério, mas o desvendar da natureza de cada um. Há poucos personagens em As Boas Maneiras, o que deixa espaço para que sejam melhor desenvolvidos e compreensíveis.

O que mais chama atenção no longa é a condução dos diretores, muito segura e demonstrando que eles conhecem todos os subgêneros do terror. Isso é visível não apenas no texto, mas na própria direção da dupla. À primeira vista, ela pode soar comum, mas, ao criar um clima fabulesco aos poucos – existem várias referencias a fábulas infantis populares -, vemos que os cineastas sabem o que estão fazendo. E essa transição do real para o fantástico vai se tornando mais natural por conta da mise-en-scène, principalmente pelo apartamento de Ana, onde se passa mais da metade do filme.

O uso das cores – sempre um azul claro com um leve dourado – e a própria decoração do local ajudam neste clima. São os quadros na parede, que parecem pintados por uma criança, peças de decoração em forma de animais comestíveis, como boi e galinha; a própria aparência jovial e ingênua de Ana, etc. Enfim, tantos detalhes da direção de arte, de Fernando Zucolloto, se afirmam como um dos pontos mais fortes do longa, junto com a fotografia de Rui Poças, sempre deixando clara a coesão das cores – azul e dourado – e ajudando o longa com a transição entre o real/cotidiano ao fantástico/absurdo. São belíssimos quadros que agregam à narrativa.

Crítica de As Boas Maneiras

Transitando entre gêneros: do terror para o musical

Voltando à direção, o ponto mais curioso de As Boas Maneiras está na maneira natural que ele transita entre os gêneros, não apenas entre o real para o fantástico. Rojas e Dutra levam o filme do terror psicológico para o horror grotesco de maneira incrível, mostrando uma boa construção para as sequências mais gráficas. Não é apenas dentro do terror que a dupla de cineastas movimenta essa trama.  Além do já citado estudo de personagens, o filme se vale de um senso de humor muito peculiar, passando até pelo musical. Isso mesmo, amigo leitor: o longa tem seus momentos musicais. Acalme-se quem já torceu o nariz,  pois são poucas e não quebram a atmosfera criada.  Os realizadores tem plena consciência sobre gênero com o qual estão trabalhando e não permitem que o conjunto vire uma salada sem sentido,

A dupla de diretores merece aplausos por conferir uma identidade à sua obra. Diferente de O Rastro, lançado no ano passado e que tentava imitar filmes estrangeiros, entre outros deméritos, As Boas Maneiras tem personalidade e ela é brasileira. Não esconde que se passa em São Paulo, com personagens locais, com pontos reais e com fábulas nacionais. Isso aumenta o prazer do espectador e evidencia a voz autoral e nacional de Marco Dutra e Juliana Rojas.

Como (quase) nada é perfeito, os principais defeitos estão na segunda metade do longa. Mesmo sendo um texto muito bem escrito, ele ainda perde um pouco de sua força no meio do terceiro ato. Neste momento, parece não ter mais o que fazer e cria várias situações que não agregam, soando como algo que o estica desnecessariamente, ainda que recupere-se no clímax da história.

Além das situações irrelevantes para o conjunto que já foram comentadas, ela mostra um sério problema de ritmo, fazendo com que filme pareça mais longo que seus 135 minutos. Outro problema está no elenco infantil que aparece nesse meio, já que os três atores se mostram dramaticamente ainda limitados, prejudicados pelos diálogos certinhos demais para crianças de classe social baixa.

Crítica de As Boas Maneiras

Felizmente, esse problema aparece apenas no núcleo infantil, porque o resto do elenco faz sua parte muito bem, em especial Isabel Zuaa e Marjorie Estiano. Além da química excepcional que ambas demonstram, a composição delas torna as personagens mais humanas. Zuaa mostra Clara como uma mulher amargurada que consegue mostrar toda a frustração social que vive através do olhar e do tom de voz. Negra e pobre, Clara se vê cansada de ser subalterna de brancos. Uma atriz conseguir trazer esse subtexto na sua composição mostra uma grande maturidade e habilidade dramática. E outra prova do ótimo trabalho está em sua perceptível mudança de sentimentos em relação à sua patroa.

Já Marjorie Estiano faz seu melhor trabalho até o momento. Sempre foi uma atriz muito esforçada, mas aqui ela realmente se entrega à personagem. O grande mérito de seu trabalho está em mostrar várias facetas de uma maneira natural. Vemos que Ana é mimada, mas tem um espírito jovial e é ingênuo. É misteriosa, porém amorosa. Tem orgulho, mas, ao mesmo tempo, vergonha da origem de seu filho e das consequências advindas. Inclusive, nas cenas dos transes, vemos o quanto a atriz está entregue ao papel, por conta da sua composição corporal que lembra um animal, sem descambar para o exagerado ou caricato. É um excelente trabalho.

Por mais que As Boas Maneiras tenha os seus pequenos defeitos aqui e ali, não há duvida que vejo uma joia rara da nossa cinematografia. Em um cinema que vai aos poucos mudando sua relação com filmes de gênero (com esforços bem vindos como Reza a Lenda e Motorrad), ver a originalidade e a ousadia de Marco Dutra e Juliana Rojas é admirável. Uma obra notável que merece atenção do público e a torcida para que venham mais projetos como esse.

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