Repleto de referências, A Sombra do Pai mostra a maturidade de sua diretora
Quem conhece os trabalhos da cineasta baiana radicada em São Paulo Gabriela Amaral Almeida, sabe que ela sempre foi fiel ao cinema de gênero, mais precisamente o terror. Mas, diferente de seus contemporâneos Rodrigo Aragão e Dennison Ramalho, ela não é adepta dos monstros e da farta sanguinolência, apesar de ter abusado do corante vermelho em O Animal Cordial, seu filme anterior. Agora, como A Sombra do Pai, Gabriela coloca em prática o que sabe fazer de melhor, que é trabalhar com os “monstros” existentes em cada um de nós e a fonte inesgotável para a arte que eles podem ser.
Antes de qualquer coisa, A Sombra do Pai é um roteiro gestado sem pressa. Logo, poucas são as arestas a serem aparadas. Isso porque este era para ser a primeira empreitada em longa-metragem de Gabriela mas, por um daqueles mistérios da vida, acabou sendo adiado. E, ao que parece, foi uma decisão certeira. A história de Dalva (a incrível atriz Nina Medeiros, de As Boas Maneiras), uma garota de 9 anos que perde a mãe e se vê no papel de ter que assumir o papel de dona de casa, devido à crise na qual se encontra seu pai, Jorge (Júlio Machado), é contada sob o ponto de vista da pequena protagonista. Até aí, nada de novo no front. O diferencial fica por conta do respeito ao universo juvenil que Gabriela apresenta.
Conhecida por investir pesado na preparação de seus atores, o que inclui ensaios e conversas meses antes do início das filmagens, a cineasta conseguiu criar um conto fantástico sem os exageros típicos do horror meramente comercial americano, mas com uma elegância sombria comum à outras mulheres que trabalham com o tema, como Julia Ducournau (de Raw). O olhar extremamente expressivo de Dalva é quase um personagem extra na trama, ao ponto de influenciar a interpretação de Júlio Machado. Luciana Paes, presença constante nos filmes de Gabriela, dá vida à Cristina, tia de Dalva e uma coadjuvante muito bem escrita e que agrega pitadas de humor que funcionam como respiros antes da tensão tomar conta da tela.
Madrugadas cinéfilas
Apresentado pela primeira vez no Festival de Brasília do ano passado, de onde saiu com três troféus, A Sombra do Pai é mais uma amostra da importância dada à trilha sonora dentro do cinema de gênero. Composta por Rafael Cavalcanti, a trilha sonora remete às composições da banda de rock progressivo italiana Goblin, conhecida por criar as inesquecíveis trilhas dos filmes de Dario Argento. A música de Cavalcanti acompanha com inteligência as madrugadas que Nina passa na sala de casa, assistindo filmes de terror na TV.
Essa predileção da personagem, além de ser uma memória de infância da diretora, serve para mostrar que a pequena, apesar da pouca idade, sabe lidar com o medo melhor que os adultos que a cercam. Sua tia apela para Santo Antônio e simpatias sinistras para conseguir casar, mas se arrepia só de pensar na possibilidade de sua cunhada voltar à vida, que é o desejo de Nina. Há também espaço para uma crítica social ao trabalho como uma espécie de escravidão dentro das classes mais baixas. Jorge trabalha além da conta para não ter contato com a filha e as lembranças da esposa morta, ao mesmo tempo que as agruras do trabalho começam a destruí-lo. Sua fuga o leva para outro buraco escuro, tão triste quando o que ele tenta evitar.
Com toda a crise no Ministério da Cultura, nosso cinema precisa mais do que nunca de criatividade. A Sombra do Pai é um exemplar único dentro da nossa cinematografia atual, mais dada à fundamentar-se na realidade nua e crua que na fantasia. Mas este conto fantástico só funciona e conquista o espectador porque quem o conduz sabe do que está falando e não poupa nem a pesquisa, nem a humanidade em suas histórias. Em cada escolha cênica, em cada movimento de câmera, fica claro que Gabriela Amaral Almeida tem bagagem de cinema de gênero, acumulada desde antes do cinema tornar-se seu trabalho. Isso faz toda a diferença na hora de realizar um filme que se propõe ao insólito, que brinca com o sincretismo religioso brasileiro e ainda injeta magia em fundos de quintais aparentemente inocentes.
Em um ano marcado por produções de terror tupiniquins que vão desde o gore até tramas fantasmagóricas, A Sombra do Pai merece atenção por ser, até agora, um dos exemplares mais bem acabados do gênero no nosso país, conseguindo a proeza de falar dos nossos problemas sem deixar de ser intimista, de ter um bom roteiro e cenas bem pensadas. É cinema, antes de qualquer coisa. Por mais que a arte possa ser o veículo para nossas causas, contar uma história é a principal função de um filme. Caso contrário, estraga a viagem. E a mensagem também.