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E Deus Disse a Caim – Pedra, Sangue e Areia!

Klaus Kinski comanda vingança macabra em E Deus Disse a Caim

Uma das características da chamada quarta fase do spaghetti western, iniciada por volta de 1970, é um humor pastelão com direito a acrobacias e tiroteios coreografados na medida para provocar gargalhadas. Quase como se Os Trapalhões fossem em turnê por Almería (um dos cenários clássicos abordados no documentário Desenterrando Sad Hill) e arredores. Porém, um exemplar poderoso e nada engraçadinho surgiu nas telonas neste período, e deve ter causado impacto em quem estava acostumado às piruetas de Trinity e companhia. E Deus Disse a Caim (E Dio disse a Caino, 1970) não pretende ser provocador apenas em seu título. E só consegue isso porque tem como comandante do espetáculo o versátil e inventivo diretor Antonio Margheriti (sim, o nome falso do personagem de Brad Pitt em Bastardos Inglórios é uma homenagem do cinéfilo Quentin Tarantino).

E Deus disse a Caim

Aqui ostentando o pseudônimo de Anthony M. Dawson, o italiano faz valer sua experiência com o gênero terror, e até com o sci-fi, para criar um spaghetti fantasmagórico, trágico e noturno. O espectador com medo de escuro deve aproveitar os minutos iniciais do longa, pois é dos poucos momentos onde o sol brilha e queima a pele dos prisioneiros condenados a quebrar pedras no meio do nada. É nessa prisão que encontra-se Gary Hamilton (um Klaus Kinski inspirado) que, como todo bom protagonista de tramas de vingança, é cercado de mistérios. Quando anunciam que sua pena foi revogada, ele junta suas tralhas em silêncio e parte em busca de Acombar (Peter Carsten) responsável por sua injusta prisão. Não temos nenhuma obra-prima de roteiro e nem é preciso. O texto assinado por Giovanni Addessi e Margheriti é apenas uma base para que o último faça dos detalhes aquilo que torna E Deus Disse a Caim inesquecível até para quem conhece pouco do faroeste italiano.

Com o apoio de uma trilha sonora anti-Morricone, com uma canção-tema melancólica intitulada “Rocks, Blood and Sand” e interpretada por Dan Powell, o diretor constrói um clima gótico dentro de um típico cenário de cidadezinha do oeste. Óbvio que a opção por cenas noturnas colabora para que tudo fique ainda mais fantasmagórico, mas Margheriti sabe que o terror italiano não é clichê e usa elementos que já podiam ser notados em seus filmes anteriores, como I lunghi capelli della morte, de 1965. Mas não podemos ser injustos com o elenco. Ninguém ali merece um prêmio, mas a câmera (em especial quando assume o “olhar” do lustre da casa de Acombar) torna as caras de bocas e os olhares caricatos de Carsen e também de Antonio Cantafora, que interpreta seu filho, Dick Acombar, parte da atmosfera trágica.

Só que é Klaus Kinski quem dá o toque final, aquilo que nos faz soltar um suspiro feliz após a última cena. A maldade de Gary Hamilton não é voltada para a pura carnificina. Fazer seus inimigos sofrerem é só o prato de entrada. Ele deixa pistas pelo caminho para que pouco precise puxar o gatilho e, mesmo assim, causar o maior dos estragos. Sua habilidade chega ao ponto de confundir Acombar, que dava como certo que Hamilton iria morrer na prisão. Na cabeça do personagem, mais que um vingador, seu inimigo é um demônio.

E Deus disse a Caim

Demônio do oeste

Não fica claro em E Deus Disse a Caim se o protagonista é mesmo de outro mundo, seguindo a linha de filmes como Django, O Bastardo, de Sergio Garrone, e O Estranho Sem Nome, de Clint Eastwood. Porém, Margheriti não poupa o espectador do rosto singular de Kinski, que chega a emular o astro da fase muda do terror Lon Chaney e suas mil faces assustadoras em alguns takes.

O vento constante, que anuncia o tornado e faz a cidade se recolher mais cedo, vira quase um coadjuvante auxiliar de Hamilton. Se o lugarejo será varrido pela força da natureza, também vai conhecer o poder do ódio silencioso de um homem. Sem toques de romances ou duelos justos, encontramos um filme que prova que uma boa mistura não precisa ser uma colcha de retalhos como as tramadas por Tarantino. A aposta de Margheriti é na sutileza das referências e no seu próprio passado como realizador de filmes de terror. Algo estranho está no ar, e não termos a certeza do que é que prende nossos olhos na tela. Sustos baratos a cada minuto não é coisa de homem do oeste.

A lenda de que E Deus Disse a Caim seria uma refilmagem de O Pistoleiro de Paso Bravo, única experiência em direção do ator Anthony Steffen, serve mais para puxar assunto do que para ser discutida. Apenas os nomes dos personagens principais são iguais e o sabor é outro, um fast-food para tardes tediosas. Molho encorpado e aroma criativo de verdade a gente encontra no prato do Margheriti.

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