Os temas políticos são preciosas fontes para roteiristas, buscando um trabalho reconhecido pela crítica e memorável como documento de uma época. Muitas sociedades que passaram por tensos períodos de instabilidade serviram de inspiração para produções de qualidade ímpar, como Hotel Ruanda (Terry George, África do Sul, Itália e Reino Unido, 2004), O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hambuguer, Brasil, 2006) e Adeus, Lenin (Wolfgang Becker, Alemanha, 2003) que sob diferentes técnicas e enfoques, mas com sensibilidade e ousadia, conseguiram transmitir o sentimento de épocas obscuras e experiências edificantes. Tradicionalmente menos comerciais, esses filmes buscam provocar o debate e a reflexão, seja sobre povos que nem lembramos que existem, seja sobre a anestesia em que vivemos em nosso mundo de suposta estabilidade. Por essas características, esses filmes merecem sempre uma menção especial em qualquer relação de grandes obras do cinema.
A produção da vez é 118 Dias, filme de estreia do diretor norte-americano, Jon Stewart, que também produz e roteiriza o longa. Baseado no livro autobiográfico Then They Came for Me, do jornalista iraniano-canadense, Maziar Mahari, a história narra período em que o autor esteve preso no Irã após divulgar imagens dos protestos que tomaram conta do país após a controversa reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2009. Jornalista da revista americana Newsweek, Mahari volta ao país natal e reencontra a própria história em meio ao caótico cenário social, e enfrenta dilemas pessoais e profissionais sobre até onde pode ir em seu trabalho jornalístico.
Como filme, 118 Dias pode ser dividido em duas partes: dentro do contexto geopolítico, o filme é imperdível, mostrando com eficiência e sem didatismo a fragilidade da democracia iraniana e a tensão social a beira do colapso em que vivia o povo do país, algo que seria refletido nos protestos na primavera árabe nos anos seguintes e, (por que não?) nos questionamentos democráticos de todo o mundo. Nesses momentos, o longa se posiciona quase como um “docu-drama”, alternando cenas reais e fictícias, com depoimentos cheios de sentimento, embora influenciados pela ótica norte-americana. Todas essas qualidades estão reunidas nos primeiros 50 minutos de projeção, no período pré-prisão do protagonista. A partir daí, temos um novo filme, centrado naquele que é a razão de ser de livro e adaptação: os 118 dias em que Mahari ficou detido em uma cela iraniana. Infelizmente, é neste momento que o filme se perde.
Na prisão, o roteiro se concentra na complexa relação entre prisioneiro e carcereiro. O título original do longa, Rosewater, faz referência ao aroma de rosas que Mahari sentia quando da presença de seu interlocutor, já que permanecia a maior parte do tempo vendado. Também remete a infância, quando o pai do jornalista o levava às cerimônias religiosas de sua cidade natal. Só pelo título, o filme projeta uma premissa fantástica, mas que não se cumpre em nenhum momento. A convivência entre os dois, pautada por diálogos rasos, não transcende a superficialidade, tonando-se involuntariamente cômicos a certas horas. A tônica da tortura e a ameaça do torturador, prometida a todo momento, quase não se materializa, levando a um sentimento de frustração no espectador. O fantasma da tortura até surge como tênue atmosfera, mas não é bem explorado pelo roteiro e pela direção, sendo questionada até mesmo pelos próprios personagens.
O mexicano Gal Garcia Bernal, na pele de Maziar Mahari, está ótimo como sempre, mergulhando no personagem com a competência que ele tem como ninguém. Bernal consegue transmitir dignidade até mesmo nos momentos mais discutíveis da passagem da prisão: os constrangedores diálogos com os fantasmas do passado. Evidentemente criados para criar uma interação em meio ao isolamento do personagem, essas conversas não exploram com a esperada tenacidade o primeiro aspecto que vem a cabeça de quem assiste à cena: estaria a solidão levando Mahari à loucura? Não, nem solidão, nem loucura são aprofundados como deveriam, algo que poderia salvar o filme como drama humano.
Em verdade, nenhum ator de 118 Dias faz feio em cena, inclusive os coadjuvantes. O que peca é a condução desses personagens, que surgem em situações inverossímeis apenas para amarrar as pontas soltas do roteiro esburacado. O dinamarquês Kim Bodnia, que interpreta o frágil interrogador, o segundo personagem mais importante, transmite seriedade e comicidade nos momentos certos, mas sofre com as limitações que a trama impõe a sua participação.
A lúgubre trilha sonora e a bela fotografia são outros pontos altos da produção, pois conduzem muito bem o espectador para os climas das elevadas temperaturas dos protestos e a frieza das sombras do medo e da solidão. Como resultado final, vale uma espiada, principalmente como drama social e político e menos como uma trama humana. Apesar de não ser possível saber o que é real ou ficcional na história de Mahari (incluindo aqui livro e filme), o tema recebe um tratamento interessante e vai agradar quem gosta de discutir os dilemas globais, apesar do viés “americanicista”. Está longe de ser uma obra-prima, mas a qualidade desse filme pode estar não na técnica, mas nas delicadas discussões que estão por trás da película.
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