Star Trek Discovery começa a ganhar forma de uma verdadeira série trekker
“A faca do açougueiro não se importa com o lamento do cordeiro”. Essa simpática e acalentadora sentença é o título do quarto episódio da primeira temporada de Star Trek Discovery. E diz muito sobre o que o episódio nos ensina sobre esse momento da história da galáxia e sobre os personagens protagonistas da série.
Por si só, o próprio episódio já apresenta uma mudança brusca no seu ritmo. Após os três primeiros episódios, cheios de ação e tensão, além da transformação repentina e inesperada no status quo dos protagonistas, nós temos um episódio que mantém as características ditadas pela série até aqui, mas que começa a se aproximar um pouco mais do velho espírito trekker – o que é, obviamente, algo bom.
O planeta Corvan II (os fãs hardcore irão lembrar que ele já foi mencionado em TNG) está sendo atacado pelos klingons. Como não poderia deixar de ser, a Federação permanece não sendo exatamente um epítome da estratégia militar, decidindo que estava tudo bem em não proteger decentemente o local que fornece sozinho 40% de todo o suprimento de dilítio (para os alferes de primeira viagem, o combustível das naves da Federação) neste quadrante da galáxia.
E, como também não poderia deixar de ser, a Discovery e seu motor experimental movido a cogumelos (segurem as piadas, por favor) são a única chance dos pobres colonos no local. Cabe a Lorca e seus comandados tornarem o motor experimental funcional, ou não somente inocentes irão morrer, como a Federação sofrerá um problema crítico de abastecimento, que pode definir os rumos da guerra para pior.
Primeiro, vamos tirar o Borg da sala – Star Trek Discovery continua apresentando alguns problemas bobos na sua narrativa, que poderiam ser resolvidos com um pouco mais de esmero na hora de escrever os textos. É um fato que Star Trek sempre se utilizou de certos níveis de absurdismo, mas tudo sempre foi ao menos baseado em algum rascunho de ciência (como demonstrado nesse artigo).
E o fato de toda a trama do episódio 4 depender de um motor movido a cogumelos cósmicos já é forçar um pouco a amizade dos trekkers. Mas a maneira como os pontos são ligados e a pesquisa da USS Glenn é compreendida são simplesmente fantasia, muito além do que muitos dos episódios mais fracos de ST já mostraram.
E isso é sim um problema, pois Star Trek Discovery se apresentou com o objetivo de mostrar uma visão mais séria, com uma narrativa mais elaborada dentro desse universo. Apelar para cogumelos cósmicos de teletransporte faz com que Star Trek Discovery se aproxime mais de Doctor Who do que de ST.
Fora isso, temos também nesse episódio algumas provas cabais de que a tripulação da Discovery, supostamente selecionada entre os melhores dos melhores, talvez não seja tão boa assim. Ou o nível é baixo mesmo, e os humanos estão pra lá de ferrados.
Porque se formos depender da inteligência da Tenente Landry, que decide atacar o monstro capturado no episódio anterior (batizado por ela mesma de “Ripper” – primeira evidência contra sua inteligência) usando armas – que não funcionaram em absoluto na situação anterior (segunda evidência), numa situação mano-a-mano – contra o bicho que estripou doze klingons armados sozinho (terceira evidência), bem… a humanidade está certamente perdida.
É claro que esse é o tipo de coisa feita para valorizar a protagonista – É CLARO que é Burnham, agora devidamente restituída de um posto na Frota, que irá descobrir como lidar com o bicho. Mas é o tipo de bobeira que nos faz duvidar da capacidade da tripulação da Discovery – que deveria ser o crème de la crème da Frota – assim como da capacidade dos roteiristas de dar o estofo intelectual necessário para Discovery.
Isso dito, o episódio tem sim coisas muito boas, e apresenta uma clara evolução em relação aos episódios anteriores, pois traz para Star Trek Discovery um elemento essencial para qualquer série que enverga o nome de Star Trek: um dilema moral sério.
Alerta vermelho – spoilers à frente. Teleporte-se para fora da crítica se não quiser ser atingido!
Burnham, de fato, acaba descobrindo como lidar com o bicho – ele não é um monstro predador voraz. Trata-se de um tardígrado, um ser microscópico altamente resistente – mas essa variedade espacial, por algum motivo, tem o tamanho de um rinoceronte. E ele não apenas se alimenta dos esporos dos cogumelos cósmicos, como também comunica com eles, tendo um inteiro da galáxia conhecida em sua mente.
Entretanto, o primeiro problema surge logo na abordagem. Lorca tem pressa: a maneira como ele convence Stamets, Burnham e o resto da tripulação a acelerarem a pesquisa leva a definição de “assédio moral” a todo um novo nível. É o tipo de atitude militarista que se sustenta somente na base da “autoridade hierárquica”, e que, através da história, é a desculpa mambembe sob a qual todos os crimes de guerra tomam refúgio.
Não que Lorca seja um vilão – um dos debates levantados aqui é o bom e velho maquiavelismo “os fins justificam os meios?”, normalmente trazido à tona em contextos de guerra, mas a mensagem que o personagem em si está mandando é exatamente essa: ele não é Kirk, Picard, Janeway ou Archer. Nem Sisko reage de maneira tão intensa, e pelo que vimos em DS9 sua situação não era muito mais tranquila do que a de Lorca.
Jason Isaacs é visivelmente o ator mais confortável com seu personagem, pois a maneira como ele impõe o pragmatismo de seu personagem – um homem que estuda e, em certa medida, admira estratégias de guerra – simplesmente draga toda a atenção para si quando ele está em cena. De fato, Lorca não é análogo a nenhum capitão anterior, e, gostemos ou não do personagem, não podemos dizer que ele não está pavimentando seu caminho em grande estilo.
Não obstante, a maneira como o motor funciona é, no mínimo, desprezível – estabelecido que o tardígrado foi torturado para entender como seu relacionamento funciona, seu sofrimento não termina aí. Para que o motor funcione, o equipamento desenvolvido na USS Glenn visivelmente fere e tortura o animal – que, evidentemente, não tem consciência de porquê está sendo submetido a isso.
Lorca não poderia se lixar mais; cumprida a missão, o tardígrado certamente será mantido nessa condição enquanto a Frota necessitar. Stamets fica dividido: sua pesquisa foi bem sucedida, mas ao custo do sofrimento de um ser vivo. Já Burnham se lamenta.
Ela obviamente acredita que o fato de a Frota estar em guerra jamais deveria tornar a verdadeira missão da Federação – de explorar e conhecer através dos mais elevados princípios éticos e científicos – secundária, diante do fato de que uma nova forma de vida está sendo abusada para se atingir determinados fins.
Trabalhar sob pressão funciona, com a desculpa de uma guerra nas suas costas, e/ou gera os resultados esperados? O motor funciona, mas ao custo de vidas perdidas. Valeu a pena? De quem é a responsabilidade? O próprio conceito de “responsabilidade” é imputável em uma situação como essa? É aceitável torturar um ser vivo inocente em busca de um determinado fim?
Isso é o mais puro suco de Star Trek. Colocar o espectador diante de debates que permanecem atuais, como os direitos dos animais e de outros seres vivos, além do questionamento de decisões maquiavélicas como a de Lorca, é exatamente para que Roddenberry criou essa franquia. Ponto para o episódio 4.
Abaixar escudos. A ameaça já se retirou.
Outra novidade é o retorno dos klingons, ausentes no episódio da semana passada, e temos uma atualização da sua situação – e ela não é nada boa. Voq, que herdou o manto unificador de T’Kuvma, praticamente não saiu do lugar nos últimos seis meses. Sua tripulação passa fome, e quem se aproveita disso é Kol – que nos dá uma lição bastante objetiva de como klingons pensam e agem.
Essa parte da subtrama, embora breve no episódio, é bastante interessante, pois nos dá um insight menos maniqueísta do status quo do Império Klingon, mostrando que, apesar do ódio comum pela Federação, sua política interna ainda sofre os efeitos de séculos de segregação e disputas internas. Destaque para a relação de Voq e a tenente L’Rell, que promente se desenvolver em algo bastante interessante.
Ademais, é interessante notar como Star Trek Discovery aos poucos vai tomando forma. Se podemos presumir alguma coisa do episódio quatro é que a série tem sim um modelo melhor definido, trazendo histórias relativamente independentes dentro de um arco narrativo maior – o que é uma abordagem bastante contemporânea e apropriada para uma série.
Resta saber se ela continuará crescendo em qualidade, e se arriscará mais em temas intelectualmente complexos como os desse episódio – mas, esperamos, também aparando suas arestas internas, para que as situações e outros personagens coadjuvantes possam se tornar mais críveis.
Adeus, Tenente Landry. Nós mal te conhecíamos. (Será que isso a qualifica como uma red shirt?)
PS: Eu só consigo imaginar o TAMANHO do sermão que Picard daria em relação a situação do tardígrado. Sentimos sua falta, capitão…
Não deixe de conferir nossa crítica dos episódios anteriores!