Escolha pelo modelo pretensamente comprovado, no lugar da criatividade, impede Defensores de atingir seu potencial
Os Defensores (The Defenders), o team-up dos heróis urbanos da Marvel no serviço de streaming Netflix, é um resumo de tudo o que prejudica os heróis da Casa das Ideias – e dos super-heróis em geral, hoje em dia – na hora de atingir seu verdadeiro potencial; e também um resumo de como ambas as empresas estão se lixando para nossa opinião, desde que seus produtos continuem sendo vendidos/assistidos.
Desde os seus primórdios, a Marvel funciona – de maneira dicotômica – como uma grande reveladora de talentos, mas também como um moedor desses. Porque, embora permita criatividade e novas abordagens em relação a seus personagens, essa criatividade não é aleatória. Quem acompanha a empresa e sua história, conhece de cor e salteado o famigerado “método Marvel” de fazer quadrinhos.
Após o longo e tenebroso inverno que quase acabou com os quadrinhos de heróis no final dos anos 90, os heróis chegaram para ficar no cinema – e daí, com mais força para outras mídias. Era uma questão de tempo até que os encapuzados da Casa das Ideias chegassem na telinha. Mas, quando a série Demolidor (falamos também sobre seu segundo ano) estreou na Netflix em 2015, nós fomos surpreendidos – a série era sombria, com pouco ou nenhum espaço para alívios cômicos e violência acentuada. Sem mencionar, claro, a estupenda construção dos personagens – Wilson Fisk é provavelmente o vilão mais complexo da Marvel nas telas (foi mal, Loki).
E nós fomos surpreendidos não somente porque a qualidade da primeira temporada estava acima das expectativas – ela também ficou acima das expectativas porque, em 2015, o universo cinematográfico da Marvel já havia deixado bastante claro que, assim como o método que garantiu o sucesso dos quadrinhos, os filmes também possuiriam um – e hoje nós sabemos que a empresa vai morrer abraçada com esse conceito antes de muda-lo. Todos os seus filmes dentro desse universo, salvo exceções pontuais, são rigorosamente idênticos em estrutura. Se você assistiu ao primeiro Homem de Ferro, você já assistiu a 80% dos MCU.
Funciona para alguns, não para outros. Homem-Formiga (que rendeu um podcast)e o primeiro Thor são “copy/paste” um do outro em termos de roteiro – o primeiro é extremamente divertido, o segundo é uma decepção, porque os personagens se propõem a coisas diferentes. O mesmo ocorre em Defensores e as cinco séries que a precederam. A Marvel/Netflix resolveu inovar, por um breve momento, com Demolidor. Diferencia-lo do MCU.
Resultado: sucesso estrondoso. No entanto, ao invés de entender que o sucesso de Demolidor se deveu, principalmente, a um roteiro complexo, atencioso com as características do seu personagem e dos seus coadjuvantes/antagonistas, e uma produção antecipada e cuidadosa – uma dedução que não exige muito esforço mental – e não simplesmente um de seus produtos super-heróicos que calhou de dar certo, as empresas decidiram que tinham encontrado outra “fórmula dourada”. E, tal qual o resto do MCU, as empresas estão decididas a seguirem com ela até o amargo fim.
É um fato que, após a primeira temporada de Demolidor, as séries Marvel na Netflix permanecem em uma ladeira abaixo sem tamanho. Eventualmente, existe um ou outro aspecto interessante, mas no geral, as histórias variam de insossas (como a desperdiçada relação entre Jessica Jones e Kilgrave) até coisas medonhas (alguém realmente compra a bobagem da família Rand em Punho de Ferro?). A produção e quesitos técnicos passam pelos mesmo problemas – a fisicalidade da primeira temporada de Demolidor é brutal e visceral. Quando chegamos em Punho de Ferro, atuações, coreografias de combate e mesmo cenografia são de nível escolar.
Porque, assim como no MCU, não existe uma preocupação em investigar o potencial de um personagem e explora-lo a partir daí, respeitando suas qualidades e defeitos para construir uma história criativa e intrigante. Existe – como em toda máquina de mercado bilionária – a necessidade de fazer mais dinheiro, o mais rápido possível. E claro, se possível, recheando as histórias com a maior quantidade de fan-service possível, para desviar a atenção da pressa com a qual as séries foram feitas – e da subsequente baixa qualidade do produto final.
Pressa e lucro = motivações frouxas e produção ruim
A série Defensores, sendo uma união das qualidades e defeitos das séries que a antecederam, acentua essas mesmas qualidades e defeitos – o núcleo de Demolidor conduz praticamente todos os oitos episódios. Não somente porque teve duas temporadas – não foi o tempo que fez a diferença aqui, mas a qualidade na construção dos personagens, que os torna mais interessantes que os das outras séries. E esse é um problema em Defensores – a disparidade na construção dos personagens é nítida.
As motivações de Matt são muito mais palpáveis que as dos outros personagens. De fato, o próprio escopo narrativo é difícil de comprar – Jones e Luke Cage não tem reais motivos para se envolver com toda a situação, com um conjunto de deus ex machina pipocando a todo instante para manter a união entre os quatro dentro do “método Marvel” para super-grupos: heróis relutantes, diferentes uns dos outros, unidos pelas circunstâncias e por seus ideais comuns. Não funciona. A sequelada-depressiva Jones precisaria de um excelente motivo para enfrentar ninjas imortais de outra dimensão. Não tem.
De fato, esse é um aspecto que exemplifica bem como as empresas meteram os pés pelas mãos, gerando algo que não funciona por dificuldade de fazer suas peças se encaixarem: os quatro são heróis urbanos, enfrentando dificuldades ordinárias do cotidiano. Mesmo que eventualmente um ou outro adversário com poderes apareça, no geral os debates dos personagens envolvem crimes, drogas, violência urbana, abusos de gênero, raça, etc. O único com reais motivos para ter uma trama envolvendo tralhas místicas com poderes bizarros e seres de outra dimensão seria o Punho de Ferro.
Então porque diabos os três heróis urbanos foram levados a se meter com tralhas místicas do Kung Fu, e não o Punho de Ferro foi trazido para as ruas de Nova York para enfrentar uma ameaça condizente com a realidade de todos? A resposta, é claro, está menos na mente dos roteiristas, e mais na dos produtores. O que é curioso, porque existe aqui uma degeneração do conceito original – porque seguiu-se o modelo diluído e degenerado das séries após a primeira temporada de Demolidor, a mais bem feita e bem sucedida?
De novo, porque a resposta é simples: pressa e dinheiro. Se você for trazer os dramas particulares dos personagens para a mesa na hora de uni-los em um grupo, você precisa de excelentes motivos. Você consegue imaginar Jessica se importando com mais um chefão do crime em Nova York, no meio de tanta desgraça que ela já viu? Ou Daniel parando para enfrentar o crime em meio a sua perseguição ao Tentáculo? Seria difícil. Os produtores, assim, decidiram que era mais fácil apinhar Nova York de ninjas de outra dimensão e artefatos místicos, o que torna mais fácil – em tese – aceitar quatro sujeitos com poderes lutando juntos.
E conforme-se: nada vai mudar tão cedo
Não dá. A frouxidão narrativa emula os piores momentos de super-grupos nos quadrinhos – eles acabam lutando juntos por osmose, não porque possuem reais motivos para isso. No final, Defensores é só mais um imenso fan-service para fanáticos da Marvel. Até mesmo, de forma mais restrita, para os fanáticos das próprias séries, já que alguns detalhes – como a paleta de cores e a fotografia alterando sua cor e saturação para equivaler às das séries particulares de cada herói – são bem manjadas, e ficam até esquizofrênicas depois de um ou dois episódios.
Defensores até diverte, e no geral, é menos pior que Punho de Ferro, ou que a segunda metade de Luke Cage. Mas é apenas um estancamento dessa sangria, um efeito de grupo, que nada tem a ver com a qualidade da série em si. Note que eu sequer me dei ao trabalho, até aqui, de mencionar vilões e antagonistas em particular. Porque tudo na série parece bobo e trivial – pequenos desafios para os heróis irem superando, com falsas margens de ameaça. Quando consequências realmente começam a acontecer, já é tarde demais para nos envolvermos – o que é um problema muito sério para alguns personagens que são introduzidos na série.
Também não cabe aqui o questinamento “quando a Marvel/Netflix irão perceber…” – blablabla. Não irão, porque elas já sabem. A Marvel confia no seu método comprovado de dinheiro e a Netflix vai morrer abraçada com o Big Data. Os filmes da Marvel – ou “o” filme, de forma jocosa – continuam rendendo bilhões ao Império do Camundongo, assim como as séries Marvel na Netflix estão entre as suas líderes de audiência.
O que implica que é o próprio público que tem pouco ou nenhum critério em relação a esse tipo de produto, ainda tratando os super-heróis como diversões pueris e inconsequentes, sem muito potencial a não ser prender um fiapo de atenção do espectador enquanto a pipoca não chega ao fim do balde. Afinal, porque perder tempo e dinheiro produzindo algo memorável, se você pode fazer qualquer porcaria que vai lhe render a mesma audiência e retorno financeiro?
Super-heróis já derrotaram todo tipo de vilão e força maligna. Só não, aparentemente, as forças do capital.