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Bojack Horseman – Desculpando ou criticando a masculinidade de sempre?

Bojack Horseman: mais homem ou mais cavalo?

Conversando sobre Bojack Horseman, me perguntaram algo mais ou menos assim: “É mais uma daquelas séries com um cara escroto, mas que é sempre absolvido, normalmente porque tem um passado complicado? Essa fórmula já deu, não?”

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            “Back in the 90s, I was in a very famous TV show…”

Confesso que arregalei os olhos com o questionamento. Eita. Será que era mesmo o caso de Bojack, astro de uma das grandes animações originais da Netflix? Eu, pelo menos, não o tinha visto dessa forma. Mas senti que valia a pena investigar, tanto porque adoro a animação quanto porque muito me interessa o tema do universo masculino, com suas construções e desconstruções.

Caso o leitor nunca tenha visto Bojack Horseman, o texto é livre de spoilers. E, é claro, fica a recomendação: dê uma chance ao cavalo Bojack, uma ex-estrela de sitcom tentando ser relevante outra vez em Hollywoo (sem “d” mesmo). Os primeiros episódios podem não ser tão promissores, mas insista, pois só melhora.

O arquétipo do cretino adorável

A pergunta que me fizeram tem boas razões de ser. Comecemos por isso.

Pense em séries de comédia de grande audiência que têm ao menos um personagem central que ostenta sua masculinidade, trata mulheres de forma duvidosa e, ainda assim, cativa sua audiência.

Se você pensou em Charlie Harper, de Two and a Half Man, não foi por acaso. Vivido pelo ator Charlie Sheen (e aqui o sentido do verbo viver é bem amplo), Harper foi acusado de misoginia até pelos demais personagens do seriado. Na ocasião, Harper se espanta com o rótulo e defende seu “amor pelas mulheres”, sem se dar conta do quanto as vinha objetificando, episódio após episódio.

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            “Men, men, men, men, manly men, men…”

A sanção negativa dos personagens pode até ter paralelo na saída do ator Angus T. Jones – intérprete do garoto Jake, que deixou o elenco motivado por sua religiosidade e criticando duramente a série. À parte disso, porém, o público torcia por Charlie, cujo rosto veio a estampar até página de Facebook sobre “orgulho hétero”. O ridículo do programa recaía mais sobre Alan, o irmão fracassado – leia-se sem dinheiro, carreira, estilo ou mulheres.

Não é que faltasse humanidade a Charlie ou Alan, mas é pelas caricaturas que são lembrados. E (em menor escala, vejam bem) é o que há com Joey Tribbiani (de Friends) ou Barney Stinson (de How I Met Your Mother). Desculpamos vários de seus comportamentos porque, poxa vida, eles são adoráveis.

Quando Joey não se dá conta de sua burrice, rimos honestamente. Quando Barney faz um plano absurdo pra transar com alguma garota, aplaudimos o sucesso. E isso não faz dos espectadores um bando de monstros, mas também não os isenta de perceber que, enquanto esses dois têm o aval da pegação, as mulheres de ambos seriados são mais duramente sancionadas quando o assunto é promiscuidade.

Poderíamos somar à lista os rapazes de Big Bang Theory. Muitos nerds, por negarem convenções sociais sobre “ser legal a popular”, veriam um machismo geek como algo improvável. Mas não é o que se defende no vídeo “The Adorkable Misogyny of The Big Bang Theory”, do canal Pop Culture Detective (em inglês).

Todas essas menções mereceriam muito mais análise. Seu propósito aqui é apenas nos lembrar de que, na cultura pop, caras um tanto escrotos podem ser tolerados, sim, se não exaltados por isso.

Suas respectivas narrativas até dão motivos pra que sejam como são: família difícil, rejeições passadas, falta de inteligência, pouco traquejo social… E quando o assunto for reverter tais hábitos, normalmente é porque se apaixonaram por alguma moça “que vale a pena”, que nunca tratariam como objeto.

Notem, se já não ficou claro, que aqui não se pretende pregar moralismo e castidade, mas sim propor uma perspectiva na qual homens não são validados como eternos moleques, coitadinhos produtos de seu meio, enquanto a mesma generosidade não se aplica a mulheres.

De volta a Bojack, enfim.

Um cretino não tão arquetípico

Depois de relembrar alguns sitcoms, não parece tão por acaso que Bojack tenha protagonizado um desses nos anos 90. Porém, a série Horsin’ Around tinha um apelo mais edificante e familiar, com cara de Três é demais, acompanhando o dia a dia do personagem Cavalo e dos três órfãos que resolveu adotar.

Quando conhecemos Bojack, ele já vive certo ostracismo e grande amargura, ainda que siga milionário. Em seu sofá vive Todd – tratado como um parasita, mas no fundo a única companhia de Bojack em várias situações. O cavalo também costuma esbarrar com Mr. Peanutbutter, um otimista labrador que lida muito melhor com a própria história na TV e com quem Bojack tem pouca paciência.

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            Diane, Mr. Peanutbutter, o radiante Bojack, Princess Carolyn e Todd. 

Mas são as personagens femininas que rendem as melhores interações. Por anos, Bojack é agenciado pela gata Princess Carolyn, com quem eventualmente dorme – em uma relação de intenções não muito alinhadas. Há também a inconsequente cantora Sarah Lynn, misto de Britney Spears com Lindsay Lohan, que foi sua colega em Horsin’ Around. E, tentando penetrar a carapaça emocional de Bojack, há Diane Nguyen, ghostwriter que precisa resolver a autobiografia que ele nunca conseguiu parir.

Como disse, nada de spoilers por aqui. Essa é apenas a premissa básica da animação, com a chegada de Diane e a forma como faz Bojack revisitar sua vida. E é assim que descobrimos, por exemplo, sua criação conturbada, com um pai desinteressado e uma das mães mais azedas da história.

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                      Um preciso retrato da família Horseman.

Mas não seria a justificativa simples (no caso, a dura infância) exatamente um dos clichês do cretino desculpável? Não em Bojack Horseman. Pois o programa não sofre de simplismo, e nada é bem o que parece: Bojack não é só um pobre fruto de um lar difícil, e sua mãe Beatrice não é só uma velha chata por esporte. Tudo desenvolvido ao longo das (por enquanto) quatro temporadas.

Essa complexidade também se manifesta nos comentários sociais da animação. Há temas bastante correntes, como o direito ao aborto, e outros raros, como assexualidade. E quando o roteiro leva a progressista Diane a desejar porte de arma, tudo de forma absolutamente crível e hilária ao mesmo tempo, aí não restam dúvidas da genialidade da animação.

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                               Meme extraído a partir da animação e seus comentários.

Por outro lado, também sobram momentos genuinamente fofos, igualmente certeiros. Por exemplo, é comum que os animais humanizados sejam vistos em situação típicas de bichos (menção obrigatória a Mr. Peanutbutter usando colar elizabetano, aquele cone que botam em pescoço de cachorro). Ou que Todd tenha as mais absurdas ideias de empreendedorismo já vistas, no auge da inocência.

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O que dizer de Vincent, que todos (exceto por Bojack) veem como um adulto, e não como meninos empilhados dentro de um casaco?

E a masculinidade, afinal?

Sim, a forma como a animação evita simplismos também se traduz no comportamento de Bojack. O cavalo comete escrotices muito mais sutis, que somente roteiristas antenados no debate sobre masculinidade traduziriam com tanta verossimilhança.

Em seus relacionamentos afetivos e familiares, Bojack pode se mostrar sentimentalmente imaturo; transferir cargas emocionais; se omitir de responsabilidades e cuidados mínimos; ser orgulhoso e passivo-agressivo… Porém, não cairá em certos clichês do machismo, como dar um tapa em uma bunda aleatória, demonstrar posse sobre sua parceira, praticar mansplaining

Sim, esses clichês são problemas que as sociedades ainda precisam comer muito arroz com feijão pra resolver. O caso é que em Bojack Horseman opta-se por focar nas nuances das relações problemáticas. E outra: precisamos ter motivos pra simpatizar com a trajetória de Bojack. Escrotice gratuita poderia ser um tiro no pé.

Contudo, não se engane: Bojack passa dos limites da escrotice habitual, em vários momentos. Só que esse ápice passa por uma minuciosa construção, de modo que você entende como Bojack chegou a tal ponto, mas não tem a menor vontade de desculpá-lo. Da mesma forma, quando ele tem seus surtos de ansiedade e autodestruição, você compreende de onde vêm o fatalismo e o desprezo por si mesmo.

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Bojack passando por um ataque de pânico. 

Se a narrativa não pede que desculpemos Bojack… Nem que torçamos pra que ele se afunde em flagelo… O que querer pro personagem, afinal?

Não sei vocês, mas eu quero que Bojack evolua. Simples assim.

Um debate saudável sobre masculinidade não pode pressupor que homens têm todo o direito de perpetuar atitudes tóxicas, defendendo que “homens são assim mesmo”. Por outro lado, também não pode pressupor que homens estão destinados ao fracasso, invariavelmente estragando as vidas das mulheres e suas próprias.

E, ainda que o personagem não se limite a um estereótipo de macho (ainda bem) nem ao comentário sobre construções de gênero, talvez valham esses paralelos.

Se Bojack vai chegar ao final de sua narrativa espelhando uma perspectiva otimista, não sei dizer. Assim como não antecipo o quanto dessa trajetória seguirá ou não cabendo no tema da masculinidade. Em todo caso, confio na engenhosidade e nas surpresas da animação. Se ela continuar dizendo coisas relevantes sobre o que um homem pode ser nos tempos atuais, melhor ainda.

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