Novo trabalho do paraibano Shiko, Três Buracos tem alma brasileira e tema universal
A primeira edição da Revista Banda, que será lançada em breve e está em campanha na plataforma Catarse, tem como tema central quais seriam os clássicos da nona arte brasileira. Mas o que torna um quadrinho legitimamente brasileiro? O tema? A linguagem? O traço? Tudo isso? Por mais que ainda não tenhamos respostas fechadas sobre o assunto, uma coisa é certa: na lista de quadrinhos clássicos do nosso país, pelo menos para a próxima geração, não pode faltar Três Buracos.
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A HQ, que já causava alvoroço entre os admiradores da obra do artista paraibano Shiko (entre eles está resenhista que vos escreve), foi lançada pela editora Mino em edição de luxo, com capa dura e acabamento de primeira. Mas mesmo que ela chegasse às livrarias em formato brochura, já seria maravilhoso. Porque o que faz Três Buracos ser belo está no seu interior. O traço inconfundível de Shiko, que já podia se mostrava em Lavagem e O Azul Indiferente do Céu, está mais impactante. Os olhos dos personagens parecem falar tanto ou mais que os próprios balões do quadrinho e o sertão nordestino, cenário onde a protagonista Tânia busca de forma obsessiva a turmalina gigante que seu pai enterrou em algum ponto de Três Buracos, a cidadezinha que se resume ao bordel, o cemitério e o garimpo.
Desenvolver mais do que isso a sinopse seria estragar a experiência do leitor, já que Shiko utiliza um estilo um estilo que assemelha-se à linguagem cinematográfica, em especial os spaghetti westerns e, porque não, o filme de cangaço, subgênero pouco lembrado, mas que está presente no cinema nacional desde antes do advento do som. É possível imaginar cada quadro de Três Buracos na tela grande e, apesar de preto e branco, pode-se sentir as cores amareladas e terrosas do nordeste.
Traço, close, ação
Por falar em cinema, além da clara influência dos faroestes italianos, é possível traçar um paralelo entre Três Buracos e o mais comentado filme brasileiro do momento. Mesmo sendo um projeto antigo do artista, a HQ dialoga com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, não apenas pela presença do pássaro que dá nome ao filme, típico da região onde a trama se desenvolve, mas também por mostrar pessoas resistindo a destruição de um espaço que, apesar dos problemas, é seu por direito. Tânia lembra, inclusive, alguns traços da atriz Bárbara Colen, um dos ótimos nomes do elenco.
Coincidências à parte, é a força nordestina presente de forma intensa na nossa cultura, seja nas telas ou nas páginas. E é isso que torna Três Buracos um quadrinho que só podia ser brasileiro. Tem sotaque, cenário e alma do nosso povo e só poderia ser contado por um artista como Shiko, que sabe equilibrar referências sem deixar de ser autoral. Outro ponto importante é a escolha de uma protagonista feminina autêntica. Tânia não está na história para cumprir cotas ou “entrar na moda feminista” (como se mulheres em histórias fosse uma tendência). Uma mulher lésbica e que trabalha em um garimpo é a imagem de uma heroína muito melhor que as muitas moças com superpoderes que circulam por aí. Shiko não precisou dar elementos sobre-humanos para que ela enfrente seus fantasmas, e eles são muitos.
Fantasmas, mortes, forcas. Percorrer a cidadezinha de Três Buracos é uma aventura por si só, pedindo inclusive uma releitura da obra para absorver com mais clareza todos os detalhes e subtextos. A escolha por construir os flashbacks em lápis e os momentos presentes com nanquim ajudam desde a primeira página para a imersão de quem está diante das páginas. Captamos o “estilo Shiko” e só paramos quando chegarmos ao último capítulo, momento em que provavelmente estaremos cantarolando Buraco de Tatu, canção imortalizada na voz de Luiz Gonzaga. Sim, Três Buracos tem até trilha sonora!
Os altos investimentos de produtoras em cinebiografias no nosso país, nem sempre com bons resultados, infelizmente, poderiam ser substituídos por adaptações de quadrinhos 100% nacionais. Três Buracos está prontinho para isso. Ou talvez seja só uma loucura da cabeça dessa resenhista que ela quis dividir com você, caro leitor. Porque, pensando melhor, Três Buracos nasceu para ser um quadrinho. Um clássico, aliás. Poder carrega-lo por aí, para voltar a história de Tânia e sua busca pela turmalina gigante é uma maravilha.