A sensibilidade faz a diferença em Por Deus ou Pelo Acaso
A italiana Becky Cloonan é um caso de quadrinista que transita confortavelmente entre o independente e o mainstream. Por Deus ou Pelo Acaso (By Chance ou By Providence) é um bom exemplo disso, já que foi originalmente lançado em três edições alternativas entre 2011 e 2013, para um ano depois ganhar um encadernado pela Image, com uma bela colorização de Lee Loughbridge. Valeu a pena, conforme podemos conferir pela bela edição nacional.
O álbum de capa dura, lançado pela editora Pipoca & Nanquim, tem 132 páginas. Além da bela trilogia, a edição tem uma galeria com vários esboços e ilustrações da autora. Dizer que é interessante para quem curte Fantasia em roupagem medieval é pouco, porque a própria imagem da capa já exibe uma composição bastante interessante, com um jogo de cores que confere significados a mais. No primeiro e fundamental ponto a se elogiar em uma HQ, ela já se destaca.
Indo logo ao que interessa, sobre sua segmentação para fãs de um nicho de Fantasia, sim, ela vai agradar essa parcela do público, com certeza. Porém, não se trata de um tipo de abordagem genérica ou saturada, já que falamos de histórias lançadas há quase uma década. Com seus três contos, Por Deus ou Pelo Acaso coloca o amor como elemento central de suas narrativas, mas o tratamento deste texto o afasta do lugar comum e do piegas. A sensibilidade rara de Becky Cloonan confere uma sutileza quase literária a essas pequenas histórias, o que a torna acima da média e indicado também para não fanáticos pelo gênero.
Desnecessário colocar qualquer sinopse de Lobos, O Pântano e Deméter, pois isso talvez até passe uma impressão errada aos potenciais leitores. Isso por conta de ideias que podem denotar simplicidade em uma descrição rápida. Porém, com a arte, formam um corpo conceitual que vai além da mera junção entre os dois. Basta comentar que essa Fantasia traz elementos fortes de Terror, mas com o cuidado necessário para que isso nunca entre em choque com o lirismo envolvido.
Roteiro, desenho e cor entrosados na proposta
Neste ambiente quase onírico, a beleza do traço estilizado da artista confere um clima perfeito, contando com a bem-vinda colorização, que trabalha com paletas simples e eficientes. Essa cor também cria uma sensação de complementação estre as histórias, contribuindo para fechar um ciclo proposto pela autora.
Em um jogo de alto contraste que reforça um ar macabro, a narrativa visual se permite brincar com os recursos gráficos comuns dos Quadrinhos. Por exemplo, galhos de árvores do cenário acabam usados como requadros em páginas, mas são situações dosadas entre uma diagramação mais tradicional, com grids e algumas splash pages. A moderação nos arroubos visuais faz diferença em Por Deus ou Pelo Acaso, e é exatamente por isso que esses detalhes não cansam.
Para quem não a conhecia, Becky Cloonan demonstra que domina essas ferramentas visuais à disposição dos artistas de Quadrinhos. Mesmo quem não pare para analisar esses detalhes vai sentir que a leitura fluiu maravilhosamente, passando até muito rápido. Isso traz a deixa para um detalhe que pode não agradar algumas pessoas, apesar das qualidades indiscutíveis.
Por Deus ou Pelo Acaso é recheado em boa parte pela galeria citada no segundo parágrafo. Não é culpa da editora, já que reproduzem o projeto da edição da Image, mas alguns podem achar as HQ’s curtas demais para o preço. Mesmo assim, é óbvio que a duração não é algo que desabone de alguma forma esse trabalho, então esse comentário é relativo no fim das contas.
O valor está realmente na forma como as histórias ficam conosco depois do seu fim. Essas sensações e reflexões, com certeza, duram bem mais e fazem a experiência valer a pena.