Moonshadow trata sobre o amadurecimento, tanto dos seus leitores quanto das HQ´s mainstream
Para muitos leitores, jornadas de amadurecimento são temas desgastados. Só que esse juízo precisa ser colocado em perspectiva: É desgastado porque o texto não resiste ao teste do tempo, ou porque a perda da inocência do próprio leitor o desconecta do teor dessa narrativa? Confesso que, apesar da merecida pompa e circunstância em torno do relançamento de Moonshadow, obra seminal de J.M. DeMatteis, fiquei um tanto ressabiado por me parecer que o texto não parecia tão impactante quanto a deslumbrante arte de Jon Muth, Kent Williams e George Pratt. Mas por quê?
(Clique na imagem para comprar!)
A resposta é elusiva. J.M. DeMatteis era um dos nomes mais nobres da Marvel no início dos anos 80, quando a editoria acompanhava o interesse pela revolução narrativa dos quadrinhos que chegava da Europa através de publicações como a 2000 AD e a Metal Hurlant. A Casa das Ideias havia feito suas primeiras investidas nesse sentido inaugurando o selo Epic, que publicaria materiais mais “artisticamente sofisticados” e “narrativamente elaborados”.
Na trama, Sheila Bernbaun, conhecida como Sunflower, é abduzida por estranhas e abstratas criaturas espaciais conhecidas como Des-mesus, tornando-se parte de sua coleção de criaturas capturadas através do cosmo. Ali, um surreal relacionamento se desenvolve, e Sunflower se torna mãe. O quadrinho então narra a vida e amadurecimento de seu filho, Moonshadow, e sua jornada através das estrelas junto com sua mãe e seu pai adotivo, o irritante Ira.
O principal traço de personalidade de Moonshadow é o fato de que tudo o que ele conhece são narrativas – sejam aquelas que sua mãe lhe conta, sejam aquelas absorvidas através de livros. Ou seja, sua inocente perspectiva infantil é literalmente fantástica: Sua única percepção da vida e do universo antes de suas aventuras é completamente idealizada, e a jornada em si trabalha o doloroso processo de dissociação entre a riqueza da imaginação e o choque da realidade pelo qual todos passamos quando crescemos.
Quadrinhos como arte
Disso, entendemos um certo nível “literário” da história. Não há contradição nossa aqui. As aspas no fim do segundo parágrafo não são irônicas. Quem conhece um mínimo de história das HQ´s sabe que não foram DeMatteis e a Epic que atingiram esse objetivo no mainstream, mas Moore e Gaiman e a Vertigo. Mas isso não torna a precedência de DeMatteis e da Marvel menos importante, pelo contrário; ter obras inteiramente pintadas e com narrativas mais épicas, como A Odisseia da Metamorfose de Starlin ainda em 83 ou a própria Moonshadow a partir de 85, foi determinante para a liberdade criativa e atenção que receberam membros posteriores da invasão britânica como o próprio Gaiman, que só começaria a publicar Sandman – cujas edições mais cínicas e non sense ecoam aspectos de Moonshadow – em 1988.
Ou seja, o trabalho de DeMatteis, tanto no sentido artístico quanto editorial, são extremamente importantes. Trata-se da primeira HQ serializada realizada completamente em telas – esforço tão hercúleo que exigiu que o artista original, Muth, tivesse que ser auxiliado posteriormente por Williams e Pratt. De muitas formas, Moonshadow ajudou a abrir portas e destacar gente como, além dos supracitados autores, Karen Berger, alma e coração por trás da Vertigo, de quem DeMatteis era muito amiga.
Sendo assim, voltamos para a questão inicial: Por que as ressalvas do primeiro parágrafo?
A tese proposta é: Justamente porque Moonshadow é uma obra de transição. Ela é muito superior às tramas publicadas pelas duas grandes no período – exceção feita, talvez, aos trabalhos de Moore, que já havia assumido Monstro do Pântano – mas ainda assim inferior ao que veríamos posteriormente com Moore e Gaiman. E isso talvez seja um dos motivos pelos quais essa obra não via republicação no Brasil há quase 20 anos, situação gratificantemente revertida pela editora Pipoca & Nanquim.
Dessa forma, deixamos claro que insistimos nessa comparação com os ingleses não por força dos nomes envolvidos, mas porque – frisamos – Moonshadow possuía esse tipo de pretensão. A magnífica arte aquarelada, belissimamente pensada e colorida, acompanha uma narrativa que é essencialmente uma alegoria para a jornada de amadurecimento tão comum na história da literatura, reunindo nuances de diversos estilos: realismo fantástico, surrealismo, fantasia, etc. No entanto, em que pese que DeMatteis esteja longe de ser um escritor ruim, ele era um escritor do seu tempo.
Isso significa que, tendo sido publicada em 85, a narrativa ainda é muito carregada de diálogos um tanto prolixos e um número verborrágico de caixas com a voz em off explicando coisas que, em certos momentos, inclusive prejudicam a fruição da arte no quadro e limitam as possibilidades de imersão e interpretação. Novamente, isso é a visão de um leitor em 2020, e Moonshadow, dentro de uma apropriada perspectiva histórica, permanece muito bem escrita. Mas é um tanto frustrante imaginar que ela foi publicada de forma quase concomitante com Watchmen e encerrada apenas um ano antes do início de Sandman, e, embora claramente compartilhe o mesmo tipo de pretensão, está bem longe de alcança-las.
Bela e necessária
Permanecemos caminhando em círculos sobre o veredicto. Pois bem, batamos o martelo: Moonshadow é uma obra necessária. Todos os argumentos acima importam muito mais para quem é versado ou tem interesse em estudar a história e estilos das HQ´s do que para o leitor casual que deseja apenas curtir uma comovente aventura. E mesmo para este, se a narrativa pareça datada, a onírica e deslumbrante arte de Muth é motivo mais do que suficiente para tê-la em casa, assim como o magnífico tratamento dado pela editora ao volume, que conta com generosos extras, é motivo mais do que suficiente para colocá-la na sua estante.
Talvez todas as conjecturas acima sejam fruto apenas do juízo de gosto de um sujeito precocemente envelhecido e meio (meio?) ranzinza. Aos seus olhos mais criativos e deslumbrados, amigo leitor, talvez Moonshadow lhe deixa estupefato com seu prato cheia de abstrações e cores vivas. Da parte deste colunista, continuo na torcida para ser abduzido e viver algumas aventuras, e quem sabe recuperar um pouco da imaginação e do deslumbre.
É só não me engravidarem. Aí já é loucura demais.