Mondo Sama é um festival de polivalência de um grande artista
Um pequeno tesouro em termos de exercício quadrinístico, Mondo Sama é uma antologia que desfila todo o talento e polivalência do artista Eduardo Filipe, o Sama, lançado esse ano pela Editora Noir. O rotundo volume é uma compilação de 20 histórias escritas e desenhadas pelo autor, tratando de inúmeros temas que refletem sua formação como indivíduo e artista – formação tanto local, nos circuitos alternativos de arte e cultura do Brasil durante a época da ditadura, assim como uma formação geral, inspirada na elite dos quadrinhos underground e alternativos nos grandes centros do mesmo período.
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De fato, o que mais chama a atenção logo na saída é a qualidade da arte – absolutamente inquestionável. Sama esbanja habilidade tanto em traços mais particulares como também emulando estilos de suas grandes referências. Embora o texto de orelha faça alusão a nomes como Carlos Zéfiro e Guido Crepax, o autor também exibe uma profunda influência de outros nomes dos fumetti, principalmente os oriundos da Alter Linus, que produziam materiais de referências similares às de Mondo Sama. Existe ali também uma influência mais forte do trabalho dos irmãos Hernandez do que de Robert Crumb, outra referência citada pelos editores do volume, mas que parece presente apenas conceitualmente, e de maneira mais perene do que outras influências mais específicas.
Ainda no aspecto visual, dois destaques precisam ser ressaltados: a diagramação e o contraste no trabalho em branco-e-preto e no uso da cor magenta. No primeiro, é deliciosa a maneira como Sama não se prende a nenhum modelo pré-estabelecido de narrativa, e simplesmente constrói a diagramação não apenas como ela se faz necessária, mas também como se faz envolvente. Característica que define apenas aqueles que tem pleno domínio da linguagem visual da nona arte, muitas vezes em Mondo Sama a própria disposição e forma dos quadros e balões são, de muitas maneiras, uma forma de arte em si, não apenas servindo a narrativa, mas expressando algo eles próprios.
E, no segundo, o contraste de cores, temos um sabor a mais para os desenhos. Como emula diversas formas de arte e estilos através do volume, nós temos de tudo – mas em alta qualidade: um chiaroscuro mais chapado, à lá Milton Caniff até uma trabalho de grafite esfumaçado que lembra vagamente os trabalhos de gênios como Dino Battaglia; mas é em algumas histórias, que usam a cor magente para compor belos cenários e composições, que a arte de Sama realmente se sobressai. Uma delas em particular, A Entrevista, é particularmente bela, já que o uso do magenta transmite uma intensidade visceral, quase como se pudéssemos sentir a “temperatura” da história. Simplesmente brilhante.
As narrativas também alternam em estilo e sentido. Elas vão desde histórias explicitamente fantásticas, passando pelo realismo mágico, até momentos mais autobiográficos. Embora não seja citado – aqui, este colunista está no plano da especulação – em alguns momentos essas histórias remontam aos mangás watakushi, o gênero autobiográfico que revolucionou os quadrinhos no Japão – justamente pelo uso, muitas vezes, de elementos fantásticos para pontuar momentos relevantes de narrativas mais realistas. De toda forma, são ótimas referências. Principalmente, e também porque, Sama é um filho da contracultura, e essas histórias, de muitas maneiras, proporcionam reflexões sobre os bons valores e legados que esse momento da história da arte gerou e que, infelizmente, são esquecidos ou relegados com frequência. Em tempos de recrudescimento de liberdades, inclusive artística, um volume como Mondo Sama nos lembra de que ainda tem muita gente boa e criativa pensando no mundo e sobre ele.
Não sem problemas
De certa forma, talvez a única crítica que se possa fazer ao volume se deva ao seu formato; como se tratam de histórias curtas, cada uma com um propósito específico, Mondo Sama não aparenta ter uma “cara” própria. Embora, como extensamente dissemos acima, tanto arte quanto narrativa sejam exímias, elas refletem bastante a publicidade em torno do volume: ele é profundamente referencial.
Para fãs e leitores de quadrinhos mais rodados e com mais repertório, pode até ser divertido ficar pescando referências do autor, mas isso nos impede de realmente apreciar quem é o artista e pensador Sama – algo que não acontece em seu outro quadrinho mais conhecido, A Balada de Johnny Furacão. Em que pese que as referências do autor sejam somente as melhores, o volume reunido acaba se assemelhando em alguns momentos muito mais a um portfólio de um talentoso artista do que um quadrinho com características distintas. Novamente, isso não chega a ser um problema; é até um ótimo estímulo para conhecermos mais de Sama por aqui, algo que não se passa no momento. Mas é melhor mediar expectativas sobre o que o material pode oferecer.
Mais problemático mesmo, em determinados pontos, é o trabalho de revisão, que poderia ser mais cuidadoso. Logo na saída, no breve prefácio de André Azevedo, já temos alguns errinhos de ortografia – o típico que acontece por acúmulo de trabalho, não por negligência ou incompetência. Nada que prejudique em absoluto a fruição das histórias, mas é necessário mais atenção, pois isso se repete mais um par de vezes através de Mondo Sama.
Para quem não conhece, o trabalho de Sama será uma grata surpresa. Para quem conhece, Mondo Sama é um imenso deleite para os apreciadores de um bom quadrinho. Seja como for, o balanço do volume é mais do que positivo – e só podemos esperar que Eduardo Filipe e Sama, estes esquizofrênicos seres que habitam o mesmo ser genial, continuem produzindo. E que isso venha até nós, claro.