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Valentina: Os Subterrâneos – A revolução de Crepax!

A Valentina de Guido Crepax é um símbolo de muitas interpretações: para os quadrinhos, para o feminismo, para a sociedade, etc.

Estamos vivendo tempos interessantes para os quadrinhos aqui no Brasil. Uma nova cena prolífica, associada a publicação de clássicos – muitos deles ainda inéditos por aqui. Entretanto, em meio a esse grande volume, algumas coisas importantes acabando passando meio batidas. Entre os quadrinhos extremamente importantes republicados aqui recentemente, mas como menos alarde do que deveria, está o revolucionário Valentina, de Guido Crepax.

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Este volume comentado aqui, Os Subterrâneos, foi lançado recentemente pela L&PM, e condensa as três aventuras que “compõem” a trilogia. As aspas são intencionais, e motivo do primeiro comentário acerca da obra de Crepax: a consistência e continuidade narrativa são muito menos importantes do que a arte e a personagem protagonista que a simboliza. Crepax foi um dos pioneiros da revista de quadrinhos alternativos italianos Linus, que por si só também foi uma revolução em si.

A partir de 1965, a Linus foi pioneira na demanda pelo reconhecimento dos quadrinhos como forma de arte legítima, tendo servido como plataforma para a arte experimental e alternativa de gente do calibre de Enzo Lunari, Lorenzo Mattotti e Hugo Pratt; na mesma revista, vimos os trabalho de Jean-Claude Forest, cuja liberal e hipersexualizada Barbarella são, indubitavelmente, uma inspiração conceitual para a Valentina de Crepax. Assim, seguindo o que veio a ser um padrão da revolução dos anos 60, os quadrinhos alternativos e experimentais da Linus eram resultado da total liberdade dada aos seus artistas.

É um fato que, narrativamente, muitos desses quadrinhos deixam a desejar em comparação com outras obras contemporâneas, ou mesmo da época. Mas é importante notar que esse não é o foco – muito desses artistas estavam muito mais preocupados em romper os padrões normativos e formalistas impostos pela indústria dos quadrinhos mainstream do período pós-guerra. A intenção não era, de fato, criar grandes epopéias grandiloquentes; ao contrário, era implodir e refigurar a própria ideia do que era “quadrinho” por dentro.

E, com foco nessa intenção, o trabalho de Crepax é notável em todos os sentidos. Mesmo não possuindo uma narrativa objetivamente consistente, a saga de Valentina é composta por diversos elementos metafóricos e visuais que são muito mais relevantes do que qualquer descrição narrativa – a começar pela própria protagonista. Crepax sempre se apresentou como um “feminista” – em que pese a opinião contrária das próprias feministas do período, representada na profunda rejeição à personagem, é necessário observar a natureza do argumento do autor.

Mais do que mulher, símbolo

Valentina é um caldeirão de elementos poderosos. Sua imagem é inspirada em Louise Brooks, uma lenda do cinema mudo. A escolha por uma figura que interpretava através de gestos e expressões é a primeira deixa de Crepax – Valentina não é “uma” mulher, mas “a” mulher – aqui entendido como uma representação do universo feminino como um todo. Ela não diz coisas, ela representa coisas. Mas o que ela representa?

A natureza da crítica feminista ao feminismo auto-afirmado de Crepax é calcada principalmente nesse ponto. Valentina é uma personagem absolutamente emancipada e livre em todos os aspectos que definem seu corpo, seu intelecto e suas emoções; o que a torna extremamente liberal em relação à sua sexualidade e a maneira como ela se relaciona com a sexualidade em si. Para Valentina, liberta dos grilhões conceituais do patriarcado, o sexo não é uma ferramenta de poder, mas de expressão – entender como Valentina pensa o sexo significa entender, em parte, o que é a própria Valentina.

Sua relação com a imagem não para por aí. Nossa protagonista é uma fotojornalista – alguém que entende o mundo através da interpretação de momentos e ideias congelados no tempo. Existem aqui dois níveis conceituais importantes levantados por Crepax – um externo à obra, ou interno. No nível externo, há o fato de que a fotografia era um campo predominantemente masculino nos anos 60. Colocar sua personagem como alguém de destaque em um campo dominado pelo outro gênero é uma maneira de afirmar, passiva e femininamente, a emancipação dela. Não obstante, num nível interno, Crepax reafirma Valentina enquanto metáfora: tudo relacionado a ela são imagens que representam ideias mais sofisticadas do que aparentam sob um primeiro olhar.

É curioso perceber que, no decorrer das histórias, nós descobrimos muitas informações relevantes sobre Valentina; mas muito poucas relevantes para as histórias em si. Nós sabemos sua data de nascimento – provocativamente, no Natal de 42, um deliberado ataque contra a moralidade cristã, que é tão ofendida pela hipersexualidade emancipada da personagem; sabemos sua altura e a cor de seus olhos – um certo fetichismo, mas que é eficiente: Crepax preenche um possível vácuo narrativo das histórias com o poder de sedução que emana da personagem; e que, incidental e coerentemente, sempre foi o foco da HQ.

Mulher de faces

Incidentalmente, Valentina não é uma personagem unilateral – o que também serve como uma réplica às feministas do período: ela possui diversas camadas, e uma verossimilhança que não se vê mesmo em outros personagens. Ela envelhece, tem um filho, se entedia e se entristece, e sustenta sua postura liberal através da leitura de Freud e Trotski. Crepax faz da sexualidade de Valentina um símbolo, sim, mas esse símbolo possui uma interpretação aprofudada e cuidadosa. Que pode ofender alguns, é verdade, mas nessa altura, isso já deveria estar óbvio.

E, embora tenhamos mencionado algumas vezes o fato de a narrativa ser um relegada em comparação à composição artística e conceitual, ela não deixa de ser interessante também. As aventuras de Valentina contrapõem o tédio da sua vida cotidiana com a sua válvula de escape conceitual – o sexo. Como dissemos, o sexo aqui é símbolo e crítica, e não meramente ato – uma espécie de atualização do ideário do Marquês de Sade. No volume em questão, Os Subterrâneos, a descida pecaminosa da protagonista em direção às profundezas da exploração sexual  – outra crítica contundente contra a moralidade castradora e punitiva cristã – o tênue véu do realismo é constantemente desfeito, conforme a protagonista se perde em delírios de fetichismo, masoquismo e bissexualidade.

Esse traço onírico da obra também serve como escopo para Crepax trabalhar outro aspecto revolucionário da sua obra: a diagramação e composição de quadros é completamente liberta de qualquer grilhão narrativo. Inspirado também na nouvelle vague cinematográfica, em voga na Europa do período, o autor deu um passo além nos quadrinhos: criando mosaicos de imagens e situações simultâneas, Crepax desenvolvia uma cena inteira de forma fragmentada e indireta, enriquecendo uma situação absurda e delirante com a mesma riqueza de detalhes com que preenchia uma cena cotidiana ordinária, não havendo uma única sequência óbvia de leitura. Esse tipo de abstração imagética foi tão influente que atravessou o Atlântico, inspirando a arte de contemporâneos como Jim Steranko, ou até artistas americanos posteriores como Frank Miller.

Falando sobre os americanos, curiosamente, Valentina não surgiu espontaneamente em sua própria história. Antes, ela era coadjuvante de um super-herói não muito inspirado, Neutron, servindo apenas como bibelô. Ironicamente, sua trajetória fora das páginas, não deixa de ser um reflexo de sua história dentro dela – escapando da sombra cerceadora de uma fantasia de poder masculina, como interpretaria Alan Moore, Valentina cresceu, se tornou muito mais e evoluiu muito além do seu antigo “salvador” do outro gênero. O que só nos faz pensar que, embora seja um símbolo do seu tempo, ela permanece sendo absolutamente atual.

Antes todo homem conseguisse compreender as mulheres como Crepax compreendia…

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