Com ritmo cinematográfico, Lavagem é uma HQ que provoca os nervos dos leitores
Que o quadrinista paraibano Shiko (O Azul Indiferente do céu) é um artista singular em seu ofício. todo mundo (pelo menos todo mundo que lê quadrinhos com certa frequência) já sabe. Esta humilde resenhista que vos escreve chegou ao universo das HQs há pouquíssimo tempo, mas já sabe o peso do traço e da narrativa deste homem para além da Nona Arte. Sim, pois Lavagem, lançado pela editora Mino, teve seu embrião nas telas. A partir de um curta-metragem, roteirizado e dirigido pelo próprio Shiko, em 2011, nasceu a HQ, que complementa em vários aspectos sua versão audiovisual, sem deixar de ser uma obra única.
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Antes de tudo, Lavagem é uma história de terror. Não o terror barato e com efeitos de gosto duvidoso de Roger Corman. Também passa longe do ar rebuscado e sanguinolento de um gialli de Lucio Fulci. Óbvio que essas referências fazem parte da memória visual de Shiko e podem ser sentidas em suas escolhas. Mas a história do casal que não consegue se comunicar e divide o terreno de casa com um curral de porcos provoca o leitor com um tipo de medo sutil: aquele que assombra nossas memórias e nossos desejos mais secretos. O que está dentro da gente é assustador por natureza que não é preciso inventar monstros elaborados.
Por mais que o centro da trama seja a relação errante de marido e mulher, há uma função importante dos coadjuvantes. Os porcos desenhados por Shiko são baseados nas formas dos animais de verdade, mas suas feições, em especial seus olhares, revelam uma espécie de máscara assustadora. Mas não se engane pensando que são os enlameados suínos os grandes vilões de Lavagem. Como toda boa história, há uma linha tênue entre bem e mal em todos os personagens, inclusive naqueles que parecem apenas seguir seus dias grunhindo e rolando na lama antes da maré subir.
O homem é um animal faminto
Lavagem também tem espaço para a crítica, principalmente relativa ao mercado da fé. A personagem feminina passa seus dias ouvindo as palavras de ordem de um pastor (que no curta é nada menos que Silas Malafaia!) que fala sobre a importância do casamento como quem anuncia um analgésico. Seu discurso, por si só, já causa medo, ainda mais ecoando pelas paredes de uma casa simples e silenciosa demais. Os dias e as noites são sempre iguais, até que a rotina é alterada pela chegada de um homem misterioso carregando uma Bíblia. Mas ao invés de paz, ele desperta o horror.
O mais interessante é ver como Shiko costrói o clima macabro e o ritmo da narrativa, ora seguindo o padrão tradicional do quadro bem delimitado, ora rompendo as linhas e dando forma a um desenho que toma conta da página inteira. Ele não passa simplesmente de um quadro para o outro, mas se permite livrar-se dele para que as formas gritem para o espectador. Se o ambiente onde o leitor estiver colaborar com o silêncio, o resultado é ainda mais intenso. Fica difícil esquecer os porcos a observarem os humanos, esperando o momento de serem alimentados. O aguardo da lavagem é semelhante à espera da preparação do jantar. Só que o homem é um animal faminto de coisas que vão além da comida. Poder, amor, perdão, vingança.
Aos distraídos, Lavagem é uma HQ de terror que vai tornar a visão de um simples porquinho algo um tanto assustador depois da leitura. Quem se permitir mergulhar fundo nessa água turva, vai ser surpreendido com um dos melhores quadrinhos nacionais dos últimos anos.