Com ritmo cinematográfico, O Divino cativa pela fluidez
A mescla de Fantasia com narrativas de guerra, quase sempre, parece uma ideia interessante. Independente do resultado final, adicionar o fantástico ao contexto realista de conflitos armados sempre parece um bom ponto de partida. Como em Os Devoradores de Vidas, temos um bom exemplo disso em O Divino (The Divine), álbum de 2015, lançado nos EUA pela First Second Books. Trazido ao Brasil no ano seguinte no selo Geektopia, também responsável pela biografia de Stan Lee em quadrinhos.
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Criada por um trio israelense, Boaz Lavie no roteiro e arte dos gêmeos Asaf e Tomer Hanuka, a HQ mostra um especialista em explosivos que largou o exército, Mark, com uma esposa grávida e perspectivas profissionais frustradas. Jason, amigo de longa data, oferece uma oportunidade lucrativa em um serviço militar terceirizado de duas semanas no sudeste asiático, na fictícia república de Quanlom.
Durante a missão, Mark é confrontado por dilemas morais que o levam a encontrar um inusitado grupo de crianças. Leitores familiarizados com os noticiários que cobrem zonas de guerra já sabem que milícias compostas por crianças são reais (quem não sabia disso até agora, deve assistir a Beasts of No Nation, da Netflix), mas essa tem uma particularidade. Com uma ligação direta com entidades ancestrais daquela terra, que confere poderes especiais a um dos meninos, o grupo exige que o protagonista desarme os explosivos colocados no interior de uma montanha.
Com esse conflito estabelecido, amigos se tornam inimigos até um clímax movimentado e sangrento, em um ciclo bastante previsível. Mas não é isso que soa exatamente como um demérito, no fim das contas. O Divino tem qualidades inegáveis em sua narrativa fluida, lembrando – e muito – o desenrolar de um filme. É a sinergia entre o texto e as imagens que conduz a trama adiante, em um ritmo bastante seguro, recompensando os leitores com momentos que quebram a calmaria na base do choque mesmo. O melhor é que eles não soam gratuitos, dado esse contexto bárbaro de crianças cuja vida nem temos como imaginar.
Roteiro eficiente, mas peca na caracterização
Se a composição de Mark funciona e sua situação justifica escolhas feitas ao longo da história, Jason já se revela um personagem mal elaborado no início. O clichê do militar lunático e durão é martelado a todo momento, não deixando espaço para outra coisa que não seja aquele sujeito detestável e unidimensional que, claro, vai pagar caro no final. Esse contraste entre os dois, inclusive, até dificulta comprarmos a amizade antiga entre eles.
De forma relativa, também existem elementos secundários um tanto difíceis de comprar. A abertura de O Divino tem uma situação de gente comum encontrando o absurdo fantástico, mas a forma como esse evento é assimilado compromete algo desta lógica interna. Algo que, talvez, seja menos perceptível em uma primeira leitura, graças ao bom ritmo, mas não deixa de ser uma rachadura no conjunto.
A estrutura tradicional em três atos e a solução da trama no final pode incomodar uma parte do público, já que existe ali um pano de fundo mágico que, evidentemente, poderia desdobrar-se mais. De uma forma geral, existem pecados maiores do que esse. Mas, apostar no formato mais simples não é, por si só, um deslize. Boaz Lavie, pelo menos, mostra que tem consciência narrativa e sabe onde encaixar suas viradas dramáticas.
Uma arte com personalidade
Os irmãos Hanuka não decepcionam em seu departamento. Com traços e cores bem característicos, a concepção visual é marcante, com personagens que mostram energia nas expressões faciais e corporais, além de momentos mais explicitamente violentos que impresionam. O detalhismo não cai no exagero confuso, já que eles trabalham na leveza e suavidade dos traços, sem buscar os volumes através de sombras definidas.
No entanto, esse é outro detalhe que pode ou não desagradar uma parte do público. Afinal de contas, alguns podem argumentar que as cenas não têm profundidade exatamente por isso, já que os traços não variam a espessura de acordo com os planos. Por exemplo, objetos que se se sobrepõem a outros no enquadramento, portanto, mais próximos do observador, não tem um traço mais grosso que os localizados atrás. Dentro do mesmo raciocínio, a paleta de cores – que é harmoniosa – é composta por tons chapados.
São comentários técnicos dentro do conjunto, portanto, não podem ser julgados como defeitos, embora seja sempre bom comentar. Naquele que é o ponto mais importante, narrativa visual, eles estão acima de qualquer crítica. Acompanhando o ritmo cinematográfico do roteiro, eles entregam uma aventura muito segura, graficamente falando. A clareza com que distribuem as imagens lembra um detalhado storyboard de um filme, imprimindo uma cadência que faz as páginas deslizarem e só nos damos conta quando acaba.
O Divino não vai mudar a vida de ninguém, embora crie algum conteúdo para reflexão no posfácio, com os autores revelando as inspirações para os garotos Luke e Thomas. Fora isso, não demonstra intenções mais grandiloquentes em momento algum. Assumindo-se na função de entretenimento, ele entrega exatamente isso. Uma boa hora de diversão para os admiradores de temáticas fantásticas. Está bom para você?