A HQ Francis é uma fábula sobre amadurecimento e dualidade
Algumas pessoas que ainda não leram Francis (idem) podem ter uma impressão equivocada sobre o trabalho. Isso é até justificável, já que a capa nos passa uma ideia clara sobre a natureza deste universo ficcional, com suas bruxas adolescentes e seu estilo de ilustração mais jovial. Mesmo assim, o álbum da italiana Jessica Cioffi, que assina com o pseudônimo Loputyn, traz conteúdos que vão além desta superfície e recompensa os leitores que já passaram da adolescência faz tempo.
Compre clicando na imagem abaixo!
Lançada no Brasil pela DarkSide*, a HQ tem uma proposta conceitual bem clara, que a autora segue fielmente até seu encerramento. Melina faz parte de um coletivo de jovens bruxas que vive em uma floresta, às vésperas de uma competição pelo cargo de sacerdotisa do grupo. Pouco se importando com a preparação para o grande dia, ela gasta seu tempo divertindo-se e evitando a responsabilidade. Não a ajuda muito o fato de que sua melhor amiga, a prestativa e sincera Camélia, será sua concorrente na disputa.
*(Confira também as resenhas de N, Samurai Shirô, Yellow Submarine, Refugiados e Black Dog)
Subitamente caindo em si pelo tempo perdido, ela resolve trapacear e invocar um espírito que a auxilie na tarefa. É assim que Francis aparece em sua vida, assumindo a forma de uma raposa falante. Ele é quem fará o papel de mentor nesta jornada que trará um aprendizado valioso, mas, se você pensou em uma mensagem manjada e piegas, continue lendo este texto e descubra como as coisas passam longe disso.
Evitando entrar em spoilers, o que Melina vive com Francis é uma metáfora mais crua do que todos nós, de um jeito ou de outro, encaramos no caminho em direção à vida adulta. A parcela mais velha do público perceberá facilmente, independente de gênero, mas a HQ não se torna menos palatável para os mais novos por causa disso. Sem comprometer a leveza do próprio visual, Loputyn consegue ir além do nicho restrito que automaticamente associamos a esse tipo de temática. Basta estarmos dispostos a abstrair.
A psicologia das fábulas e contos de fada
Como cabe a qualquer proposta de gênero, Francis prova que sua autora compreendeu os elementos comuns do tipo de narrativa na qual se aventurou. Não é novidade que fábulas e contos de fadas têm conteúdo psicológico relevante*, então é natural que algo desta espécie apareça aqui de alguma forma. A própria natureza do espírito que dá nome à HQ já merece discussão, assim como seu relacionamento com Melina.
*(Sobre o assunto, confira as resenhas de O Conto de Fadas e Branca de Neve: Os Contos Clássicos)
Basta dizer que Francis carrega uma ambiguidade bem conveniente para sua finalidade na história, evitando cair em um maniqueísmo raso. Ele fará com que Melina entre em contato com aspectos de sua própria personalidade, ignorados ou desconhecidos. Ela, por outro lado, tem seu desenvolvimento trilhado de uma forma tortuosa, envolvendo erros comuns – ainda que necessários – da adolescência. A leitura junguiana, envolvendo o conceito de Sombra, é favorecida nesta configuração narrativa.
Loputyn se mantém sutil até o fim da jornada da jovem bruxa, completando seu raciocínio sobre os ciclos da Vida, auto descoberta e a busca por quem realmente somos. Evitando sacrificar sua mensagem com um texto didático, ela dá seu recado através dos passos da protagonista.
Traço e narrativa visual inebriantes
A experiência de ler Francis já valeria seu tempo apenas pela arte. As ilustrações são um convite irresistível a virar as páginas, com alguns painéis que nos fazem demorar um pouco mais a avançar. Personagens absolutamente expressivos, dentro de um universo ficcional convincente e pulsante, com um ar onírico e nostálgico.
Se a estilização do traço já chama atenção pela leveza e fluidez, provando-se perfeito para o tipo de história contada, a paleta de cores também merece comentários. Os tons de lilás dominam esse conto, reforçando uma ideia de paz intrínseca a paisagens naturais. Pelo fato do lilás se originar da mistura de azul e vermelho, encontramos também um simbolismo interessante sobre a dualidade humana. Não por acaso, o cabelo da protagonista é desta cor.
No conjunto, Francis apenas peca pela rapidez com que resolve determinadas situações, já próximo do seu final. Justamente por isso, algo do nosso envolvimento com Melina se esvai. A ideia de perdas e consequências, mas com novas possibilidades à frente, acaba um tanto diluída, como se a personagem apenas seguisse automaticamente um fluxo determinado. Um número ligeiramente maior de páginas, talvez, poderia ser o suficiente para desenvolver melhor esses pontos de virada.
Mesmo assim, a mensagem foi dada. Loputyn, ou Jessica Cioffi, se preferir, entregou um trabalho seguro, transcendendo as idades e gêneros de seu público. Parece seguro dizer que uma adolescente tem muito mais chances de apreciar Francis, mas a autora sabe que, independente de qualquer coisa, existem pontos de similaridade entre as jornadas da vida real. Que bom que alguns deles estão nas páginas deste álbum.