O assassino Henri Désiré Landru como personagem de Chabouté
É sempre um desafio adaptar trajetórias reais para qualquer mídia, já que os fatos, muitas vezes, não se adequam a uma dramaturgia eficiente. Aí abre-se aquela encruzilhada para o autor, que precisará decidir sobre os graus de fidelidade que servem melhor à narrativa. Se estivermos falando de algo que envolve crimes bárbaros, é um terreno ainda mais complicado. Com Henri Désiré Landru, de Christophe Chabouté (Moby Dick, Um Pedaço de Madeira e Aço), a editora Pipoca & Nanquim traz ao Brasil uma HQ que se sai muito bem dentro desta proposta.
A HQ, lançada na França em 2006, foi batizada com o nome de um dos mais notórios assassinos da França. O registro histórico é que Landru foi para a guilhotina em 1922, acusado de matar mulheres que ele atraía para roubar-lhes as posses, tudo através de um elaborado jogo de sedução. Com o país envolvido na Grande Guerra, durante anos ele aproveitou a grande quantidade de mulheres desacompanhadas para aplicar esse tipo de golpe, usando um certo carisma natural. Claro que o descarte dos corpos envolvia detalhes escabrosos, um banquete para a imprensa da época.
Porém, o álbum Henri Désiré Landru não se ocupa de pormenorizar as informações oficiais. Chabouté sabe que existem brechas em casos tão antigos de assassinatos em série. Por isso, ele resolveu criar em cima dos fatos, aparentemente, sem a pretensão de elucidar o caso ou trazer uma nova luz. Simplesmente, o que temos aqui é uma versão alternativa, assumidamente ficcional, do caminho do matador, elaborada simplesmente para propósitos narrativos de entretenimento. Absolutamente eficiente nesta tarefa, é preciso apontar.
Não espere nada tão aprofundado como Do Inferno, onde o que importa mais é o mito Jack, O Estripador e seu miasma pairando no século seguinte. Aqui, a ambição é bem menor, o que não é nenhum demérito, com o autor consciente das suas escolhas e dos seus objetivos. Tanto visuais como textuais.
A Primeira Guerra, como contexto, acaba trazendo mais camadas e inserindo personagens que caminham em uma linha tênue, sem cair nos clichês comuns da vilania ou da maldade. Destaque para Paul, uma figura trágica que se torna algo que parece saído de um filme de terror, mas que não destoa dentro daquele momento difícil para seu país. Cabe aí uma reflexão a mais para esse texto, sobre a abordagem do autor para conflito mundial e para qualquer tipo de guerra, além da consequente desumanização dos soldados.
Com isso, o maniqueísmo é mantido longe de Henri Désiré Landru. O próprio protagonista, que começa como um estelionatário comum que se envolve em um esquema muito mais grave, surpreende o leitor pelos desdobramentos alheios à sua vontade. O melhor é que o roteiro consegue fazer essas reviravoltas soarem de forma muito natural. Nem mesmo a repetição da situação básica, atrair uma mulher para um local afastado, evidenciando o caráter calculista da operação, entedia leitores.
Arte e narrativa perfeitas para a situação
Correndo o risco do clichê, é preciso comentar a fluidez cinematográfica do álbum. Em vários momentos, é difícil não imaginar as transições entre quadros como movimentos de câmera. Tudo muito bem encaixado de forma a manter o dinamismo de uma história que não perde seu ritmo em momento algum. Mesmo em páginas que trabalham apenas closes em campo e contra-campo, a cadência narrativa não enfraquece, o que é um feito e tanto em termos de narrativa visual.
Sobre a arte, fica evidente que uma ambientação de gênero terror serve muito bem para o clima, ainda que ela tenha uma proposta mais realista. De qualquer forma, o peso do preto e branco é bem dosado para criar o clima macabro, mantido sempre em um nível adequado. Cabe ressaltar também que o jogo de alto contraste nestas páginas é até irônico com a situação em si, pois, no roteiro de Chabouté, predominam mesmo os tons de cinza. Uma feliz conjunção entre desenhos e texto, brindando o público que acompanha até o final.
Como única ressalva, as páginas finais de Henri Désiré Landru podem parecer um pouco apressadas, ainda que o desfecho em si, precedido de reviravoltas muito interessantes, seja coerente com o todo. Mesmo que não cause frustração, talvez pudesse se utilizar de outros recursos dramáticos visuais. Um pecado relativo e menor, no entanto.
Enfim, mais um trabalho notável de Christophe Chabouté no mercado brasileiro. Admiradores dos Quadrinhos só tem a comemorar e correr atrás do seu exemplar.