Conheça Epicuro! (O de verdade.)
Ok, primeiro, contexto. Já que vamos falar de Epicuro, O Sábio (Epicurus, The Sage), escrito por William Messner-Loebs e desenhado por Sam Keith – publicado aqui pela Conrad em 2007 – é bom ter uma noção de quem foi o Epicuro real, no qual o personagem foi diretamente inspirado.
Epicuro nasceu na Ilha de Samos, Grécia (dãh), em 341 a.C. Quando criança, estudou com o platonista Pânfilo por quatro anos e era considerado um dos seus melhores alunos; mas seu professor não lhe foi de muito agrado. Por isso foi mandado para Téos, na costa da Ásia Menor, pelo seu pai. Ali, estudou com Nausífanes de Téos, discípulo de Demócrito de Abdera, formulador da ideia de átomo (sim, o átomo que você conhece da física é uma ideia oriunda da Grécia Antiga).
Epicuro, então, teria entrado em contato com a teoria atomista — da qual reformulou alguns pontos. Epicuro rodou a Grécia, ensinando filosofia em Lâmpsaco, Mitilene e Cólofon, até que em 306 a.C. fundou sua própria escola filosófica, chamada O Jardim, onde residia com alguns amigos, na cidade de Atenas. Lecionou em sua escola até a morte, em 270 a.C
Já o epicurismo era o sistema filosófico criado pelo pensador, que pregava a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, com a ausência de sofrimento corporal pelo conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos.
Quando os desejos são exacerbados, podem ser fonte de perturbações constantes, dificultando o encontro da felicidade que é manter a saúde do corpo e a serenidade do espírito. A nota curiosa sobre isso é que acredita-se que Epicuro sofria de cálculo renal, o que contribuiu para que tivesse uma vida marcada pela dor. Mesmo assim, permaneceu fiel às suas ideias até o fim.
Ok, fim da aula de história da filosofia chatona.
Conheça Epicuro! (O de mentira.)
O que o Epicuro de Loebs e Keith tem a ver com o Epicuro de verdade? Bom, não muito. Se a minha introdução te deixou entediado, amigo leitor, pode ficar tranquilo. Conforme atesta o próprio professor João Quartim de Moraes, da Unicamp, no seu prefácio ao livro, “não espere um tratado de história da filosofia”, pois certamente não é.
O que também não significa que o álbum seja um diversão pueril. Muito pelo contrário. De um humor mordaz e nada sutil, o texto de Loebs martela questões que permanecem bastante atuais, usando como escopo eventos reais e mitológicos da história grega; história essa que, incidentalmente – e também desnecessário dizer – definiu a história do ocidente. Para bem e para mal.
É nesse “para mal” que reside a maior parte do humor de Epicuro, O Sábio. Porque, quando estamos na escola – e sendo eu ex-professor de história e filosofia, me sinto particularmente culpado por isso – aprendemos que a Grécia Antiga foi um período idílico, onde se debatia filosofia e ciência nas ruas de Atenas, e as guerras travadas eram contra povos ignorantes e incivilizados, que ameaçavam destruir a apoteótica sociedade racional criada pelos gregos.
É. Então. Não é bem assim.
Como Loebs bem mostra no volume, a Grécia clássica não só não era um período idílico, como muitos dos problemas que existiam naquele período ainda são – inacreditavelmente – bastante debatidos hoje. Sejam eles de grande escala, como a misoginia e o machismo, ou de menor escala, mas que ainda assim prejudicam, como a egolatria dentro do mundo acadêmico, que atravanca o desenvolvimento filosófico e científico.
Quem mais sofre com esse último aspecto é um dos companheiros de Epicuro, em suas viagens pela Grécia – Platão. Como outros jovens gregos (na história e provavelmente na vida real), ele almeja um dia chegar ao patamar de Sócrates, que é retratado como um intelectual pernóstico, cercado de discípulos tietes, dono de um ego abismal e de um humor mordaz, principalmente na hora de avaliar as idéias dos novos pretendentes ao posto. Prazer que se torna ainda mais acurado quando o “pensador” em questão se trata do atrapalhado e tímido Platão.
O amigo leitor pode perceber que Loebs não tem nenhuma intenção de obedecer a qualquer rigor histórico aqui, colocando Platão como contemporâneo de Epicuro – quando, na história real, Platão teria morrido alguns anos antes do nascimento de Epicuro. Mas, como dissemos, isso não é problema algum, pois a acuidade histórica não é nem de perto o foco do álbum. Mas afinal, do que se trata?
História, filosofia, comédia – e tudo o que há de bom
O quadrinho é uma grande tiração de onda com a profusão de pensadores que trafegavam nas ruas de Atenas. Tudo começa com a chegada de Epicuro em Atenas, que tinha como meta abrir uma escola de filosofia, ganhar discípulos e fama, tal qual seu ídolo rockstar Sócrates.
Mas ao trocar a ilha de Samos pela badalada capital grega, o pensador começa a se envolver em confusões, que são deflagradas por um acordo elusivo com a deusa da agricultura, Deméter. Ela muda seu destino forçando Epicuro, ao lado de Platão e do ainda jovem Alexandre, O Grande – carinhosamente chamado de “Alê” – a executar um dos grandes mitos gregos – resgatar Perséfone das mãos de Hades.
Daí para frente, a coisa vai ladeira abaixo, e as trapalhadas vão escalonando em intensidade, com o trio se metendo em todo tipo de aperto. Cruzam com Cerbero, o cão de três cabeças que guarda o submundo grego, e com Caronte, o barqueiro que conduz os mortos até Hades; também se deparam com uma galeria de personagens emblemáticos da mitologia, como Hércules, Paris, Ulisses – quando caem de paraquedas no meio da Guerra de Troia – e o próprio pai dos deuses, Zeus, só para citar alguns.
Na mistura entre mito e verdade, o trio perscruta a Grécia, confrontando e recebendo conselhos de outras figuras conhecidas, como Aristóteles, Homero e Esopo. Para quem curte história antiga ou história da filosofia antiga, é um show de divertidos easter-eggs com mais de 2000 anos de idade.
E um dos maiores elogios que se podem fazer a obra, é que o texto de Loebs flui de maneira natural, tratando de assuntos dramáticos e históricos, ao mesmo tempo que traz conceitos filosóficos simplificados – mas sem nunca adquirir aquele tom de didatismo condescendente, como se estivesse ensinando preciosidades únicas ao pobre leitor ignorante.
A filosofia e os eventos mais conhecidos como a Guerra de Troia, por exemplo, são contextualizados com bastante competência, mas sem perder de vista a proposta narrativa inicial. Vemos discussões e debates de ideias colocadas de forma engraçada – quase absurdas quando observadas da forma como Loebs coloca – entre esses mestres do pensamento Universal, apresentados muitas vezes como ególatras neuróticos.
E mesmo diante desse contexto absurdo, Loebs consegue manter uma certa fidelidade ao pensamento das versões originais dos personagens. Em contraste aos ególatras neuróticos, a filosofia de Epicuro, por exemplo, é mostrada como a mais tolerante e humana, muitas vezes alvo da ironia de seus personagens coadjuvantes.
Obstinado, ele sempre aponta o caminho para a felicidade como sendo a da obtenção dos prazeres, mas não qualquer prazer; e sim aqueles que irão lhe satisfazer a longo prazo, como a própria sabedoria. Daí que entra em jogo sua noção de moderação, algo que o verdadeiro Epicuro realmente pregava. Há aqui uma interação orgânica entre a ficção e a filosofia, de modo que um serve de apoio para o outro, sem que falte humor a nenhum deles.
Aprecie com moderação
A única ressalva é que o humor geral do álbum pode ser um tanto hermético – o seu grande barato pode ser também seu maior problema. Se você não tem um embasamento razoável em história clássica da Grécia, e em alguma coisa de mitologia e filosofia grega, muita coisa vai passar batida por você. Dificilmente o álbum vai deixar de ser engraçado, mas existem muitas piadas que são circunstanciais, e que vão exigir alguma compreensão geral do que está se passando, deixando muitos amigos leitores menos interessados no tópico para trás.
Independente disso, ainda é um álbum que vale muito a pena ter. Ele foi publicado originalmente em 1989, pela Piranha Press – selo “alternativo” da DC – o que significa que tanto Loebs quanto Keith estavam no auge de suas formas, com o primeiro desempenhando um papel importante na nova fase dos heróis da DC na época, enquanto o segundo havia acabado de ajudar Neil Gaiman a reimaginar um certo Senhor dos Sonhos.
Não é pouco currículo. Embora a HQ esteja a um bom tempo sem ser publicada, sempre é uma boa hora para reviver um clássico desses – e se as editoras não colaborarem com o amigo leitor, este medíocre resenhista recomenda fortemente um esforço para achar esse volume.
Mergulhe de cabeça em Epicuro, O Sábio, e aproveite essa clássica HQ ao máximo. Ou melhor, não faça isso. Segundo Epicuro, o real e o do álbum, é melhor apreciar o volume com a devida moderação.