HQ de Frank Tartarus e Adan Marini, Duque das Mortes apresenta figura histórica brasileira com ares de herói
Como professor de história, a trajetória de Luiz Alves de Lima e Silva, que, como todo mundo, eu apresentava aos alunos como Duque de Caxias, sempre me foi muito interessante. O Duque era a versão tupiniquim daqueles grandes personagens da história militar, cujos feitos se misturam à lendas de tão grandiloquentes. Mas, em mesma medida, provocam nos pragmáticos – assim gosto de me considerar – uma saudável precaução e distanciamento. Afinal, o seus “feitos grandiloquentes”, para a ética e civilidade contemporâneas, nada mais são do que viés político e muito barbarismo. Talvez por isso Duque e as Mortes, de Frank Tartarus e Adan Marini, consiga a atenção do leitor: tratar esse mito histórico em uma narrativa mítica.
A trama acompanha o Duque na etapa final de sua vida, quando em seu exílio forçado na fazenda Santa Mônica, no Rio de Janeiro, recebe a visita de um amigo que se identifica como “poeta” – uma referência lírica explícita da morte que se aproxima. Com ele, retoma seus feitos em vida e seus significados, agora que seu nome deixará de ser fato para se tornar história. Entretanto, ao contrário de um relato objetivo fidedigno, o que temos são divagações em meio à presença do Duque, lenda histórica, entre outras lendas – muitas folclóricas.
É curioso pensar que, sendo ou não intenção do autor, existe uma certa liberdade, implicitamente justificada, da narrativa mítica envolvendo o “personagem real”: dada a avançada idade, não há como saber se as palavras e memória do Duque são realmente confiáveis ou fruto de uma sutil senilidade que desperta em seus últimos momentos moribundos. Fato é que, independente do que seja – meditar sobre isso é um dos sabores da trama – a visão que o Duque, e per extensa o autor, tem de si mesmo é bastante interessante. Mais do que um homem, ele é uma força da morte sobre a Terra.
O que não deixa de ser uma verdade. Quando, no primeiro parágrafo, menciono o distanciamento que figuras como ele provocam, é justamente sobre isso que falo. Qual é a diferença entre Alexandre Magno e Hitler? 2.300 anos. Hitler, no século IV A.C., seria celebrado um dos grandes gênios militares e culturais de um povo antigo. Alexandre, em pleno século XX, seria um maníaco megalômano com delírios expansionistas de dominação cultural que custaram a vida de milhares de pessoas. O Duque, na mesma medida, precisa ser avaliado dessa forma, e assim o roteirista Tartarus o faz.
Salvação da nação ou assassino monstruoso?
Por um lado, o Duque foi o grande herói do Brasil Imperial de D. Pedro II. Foi o homem que efetivamente manteve o unidade nacional durante o período de grande eclosão das rebeliões imperiais, quando inúmeros setores do país tentaram se aproveitar do famoso destempero emocional e leniência política de Pedro para conseguirem suas independências. Não fosse o prodígio militar do Duque, o Brasil hoje poderia ser um punhado de países. Por outro lado, o Brasil hoje poderia ser um punhado de países. Redundante? Não. Pois muitas dessas rebeliões tinham razões legítimas, e absolutamente defensáveis, para se opôr ao imperador, e o Duque foi o monstro que massacrou essas iniciativas e manteve esses povos submissos ao poder imperial à força.
E o que a HQ faz é justamente ponderar esse peso idiossincrático que o Duque exerceu sobre a história nacional. Ao fazer o que fez, o Duque deu vida à nação brasileira, ou assassinou inúmeras nações em seu berço? Dentro dessa reflexão, é até interessante a inserção pontual de diversas figuras folclóricas brasileiras relacionadas à morte e a destruição. Uma criativa maneira do Duque interpretar a si mesmo nessa história, mesmo que não se prive de pensar em si mesmo como um “mocinho” maquiavélico. Aquele que fez o que tinha que ser feito.
O grande destaque dessa auto-revisão do personagem é justamente o resultado da infame Guerra do Paraguai, quando suas ações foram determinantes para o encerramento de um conflito que custou mais da metade das vidas paraguaias. Foi o momento em que suas vitórias e feitos militares finalmente não contiveram o tal destempero do imperador e em que, mesmo abraçando sua dileta filosofia fatalista, opôs-se formalmente ao governante. Pense no Duque como uma espécie de Barristan Selmy brasileiro. Seu dever não lhe suprimia a consciência.
A fantasia da nossa história
Sobre a HQ em si, a narrativa de Tartarus é estável. Mesmo em certas passagens se permitindo algumas excessivas auto-indulgências filosóficas, a trama, tanto em execução quanto proposta, é talvez a mais interessante do Tesla Studio até aqui. Sua curta e acertada duração dá ao volume um certo tom de fábula, e este colunista é particularmente inclinado ao investimento de tornar a história brasileira uma fantasia, um gênero tão disseminado e tão divertido lá fora. Se feita de maneira ponderada, como é o caso aqui, sem ufanizar ou glorificar, e propondo corretamente certas reflexões, possui, além de tudo, algum valor pedagógico, principalmente em vista do acertado glossário no fim da edição.
A arte de Marini não exatamente chama tanto a atenção, mas é bastante prejudicada sim pela paleta de cores de Tartarus. É um fato que existe a intenção de encher os olhos, principalmente com as características fantásticas das criaturas folclóricas, que oscilam entre a intenção do macabro e o vibrante, mas as inserções chapadas de cores deixam tudo demasiadamente artificial, incrível (no sentido estrito da expressão). Talvez a opção por pensar a narrativa em preto-e-branco ou tons de cinza ajudasse a valorizar o traço forte e carregado de Marini, que é até apropriado para a HQ, mas contrasta negativamente com a colorização um tanto superada.
De toda forma, Duque e as Mortes é um volume, no geral, interessante. Para quem conhece pouco sobre a história do Brasil e do personagem, é uma apresentação divertida e instigante, que foge do habitual didatismo frio ou pachequismo das introduções pedagógicas ao personagem histórico. Facilitaria o meu antigo trabalho em alguma medida até.
Mas parece que, ao contrário do Duque, eu sempre chego atrasado na história.