O Condado de Essex pode ser o grande romance canadense deste século
Eu nem sempre fui um torcedor fanático de futebol. Quando criança, nem ligava para o assunto. Isso mudou quando adolescente – todos os meus amigos eram torcedores doentes do São Paulo, e me aproximar dessa cultura foi um jeito de ficarmos ainda mais próximos. Parece besteira, mas isso levou a algumas das minhas melhores memórias desse período da minha vida. Fez com que eu me relacionasse com essas pessoas de uma forma além do individual, mas também cultural. Me conectou com eles e, de muitas formas, ajudou a delinear a relação de amor e ódio que tenho com minha cidade, na qual nasci, fui criado e me sinto – para bem ou para mal – parte dela. Talvez por isso, apesar de O Condado de Essex de Jeff Lemire ser um romance eminentemente canadense, eu consiga me identificar tão facilmente com ele.
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Lançado aqui em 2017 pela Mino o calhamaço de mais de 500 páginas apresenta uma visão romantizada do local homônimo onde o autor cresceu. Distribuída em três atos – independentes, mas conectados por elementos comuns do Condado e das pessoas que ali habitavam – a HQ é uma daquelas raras obras que conseguem cobrir um amplo espectro de emoções e ideias com igual aprofundamento. É um trabalho de memória, história e esquecimento, num sentido ricoeuriano, que reconstrói toda uma cultura local e histórica através de perspectivas intimistas e particulares.
Como dito, a trama se desenvolve em três momentos: no primeiro livro, Contos da Fazenda, temos a história de Lester, um garoto órfão que vive com seu tio Kenny. Ambos se debatem para compreender um ao outro. Suas perspectivas distintas de mundo são fruto de experiências e vivências – ou falta de, no caso de Lester – que criam um abismo entre eles. Kenny é um homem pragmático e simples, cujo único objetivo é ser um fazendeiro. Lester é um menino de imaginação vívida, que usa o universo dos super-heróis como válvula de escape e porto seguro em um momento atribulado da vida. A única conexão que eles possuem entre si é o hóquei.
O segundo livro, Histórias de Fantasmas, mergulha ainda mais no elemento cultural do que o hóquei significa para o canadense médio. Ele conta a história dos irmãos Lou e Vincent LaBeuf, que deixaram sua terra natal no interior para ir à cidade grande alimentando o sonho de muitos jovens locais: tornarem-se astros do esporte nacional. Usando esse elemento comum, Lemire traça uma narrativa qasi-dostoievskiana de amor, traição, família e responsabilidade. Embora ela seja contada do ponto de vista de Lou, seu impacto emocional se deve justamente ao fato de que o idoso e moribundo sofre de Alzheimer. Sua memória elusiva transita entre emoções e fatos, transmitindo muito mais uma percepção do que informação sobre elementos maiores-que-a-vida, becketianamente falando, na trajetória de Lou.
Quem faz a transição para o último ato é justamente a cuidadora de Lou, Anne Queenville, em A Enfermeira do Interior. Ela é uma cuidadora, responsável por manter alguns idosos minimamente confortáveis e bem tratados. No entanto, apesar do seu trabalho duro, ela raramente é reconhecida ou tratada da mesma forma pelos seus pacientes. Ela é a definição estereotípica da mulher rija do interior: trabalhadora, viúva, mãe de um moleque preguiçoso. Se Lester carrega nuances auto-biográficas e os irmãos LaBeuf representam a ruína do herói canadense não-realizado, Anne é a exegese da mulher comum – os milhares de anônimos que compõem a massa e a cultura de um país, com laços e raízes profundas com sua terra. Ainda que tais laços sejam praticamente esquecidos, representados na trajetória metafórica e análoga de sua avó, a freira Margaret Byrne.
Intimista e abragente
Quando Tezuka escreve sobre seu mangá Ayako, ele afirma que suas pretensões eram algo próximas de uma versão japonesa de Irmãos Karamazov. Falta-me estofo sobre a cultura local para afirmar algo assim, mas não consigo pensar em outro romance que possa representar para os canadenses o que O Condado de Essex representa. Talvez os trabalhos de nomes como Joseph Boyden e Thomas King, usados por historiadores e bibliófilos para entender a ascensão do Canadá enquanto nação ao exibir as veias abertas de sua história colonizatória, mas o que Lemire faz é um traçado emocionante, impactante e reflexivo do canadense moderno – ele mesmo incluso nesse bojo – que o aproxima, analogamente, das pretensões de Tezuka para Ayako ao mirar o clássico russo.
Seu traçado e narrativa visual caem como uma luva: egresso da escola de autores independentes do Canadá, a deliberada linha errática e grossa, preenchida com sombras fortes e precisas de nanquim, potencializam o envolvimento empático dos personagens enquanto nossa mente racional capta as nuances conceituais e culturais mais abrangentes do romance. Sua grade de diagramação é simples e sem grandes arroubos de ousadia, mas o domínio de Lemire nos lembra constantemente de que essa é uma decisão consciente: sua intenção aqui é muito menos experimentar com a forma e muito mais criar uma trajetória sólida de personagens e eventos.
Quando abri o texto relatando minha breve experiência pessoal é porque, para além dessas pretensiosas referências literárias e quadrinísticas, O Condado de Essex me lembrou de que eu sou um indivíduo, mas que também é parte de algo maior: de um lugar e de uma história que me definem e que, sendo eu parte delas, também ajudo a definir. Lester, os LaBeuf e Anne são pessoas absolutamente distintas, mas tão parte do Canadá quanto o hóquei e o frio, que os definem e no qual se perdem. Eu e meus amigos somos completamente diferentes uns dos outros, mas tão parte do Brasil e de São Paulo quanto o futebol e o concreto que nos cerca – que nos definem e no qual nos perdemos. A memória, a história, o esquecimento.
A pergunta que fica ao amigo leitor é: quem você vai encontrar quando visitar O Condado de Essex de Jeff Lemire?
Boa viagem.