Blue Note mostra que o imaginário proporcionado pela época da Lei Seca está longe de se esgotar
Não consigo deixar de apreciar uma certa ironia pessoal no título da HQ de Mathieu Mariolle e Mikael Bourgouin, Blue Note – Os Últimos Dias da Lei Seca, lançado aqui recentemente pela editora Mythos. Quando garoto, ainda deslumbrado com o universo de conhecimento que se apresentava diante de mim, me tomava por um formalista. O que era um problema para alguns professores, como os de música, com quem estudei na adolescência.
Compre clicando na imagem abaixo!
Ao tentar me ensinar como executar uma blue note – nota que não consta na escala diatônica tradicional, baixando alguns comas aos terceiro, quinto e sétimo graus da escala – ele ficava extremamente frustrado. Pois elas saiam perfeitas – mas de forma tétrica. Levou muito tempo para eu entender que a blue note não é uma técnica. É um sentimento. Demorou para obter uma certa vivência, e assimilar que música – como todas as outras formas de arte, incluindo quadrinhos – vai além de convenções fixas e estéreis. Hoje, sou grato ao meu professor, pois, ao abrir minha cabeça (às vezes meio na pancada) para além do formalismo, posso compreender a beleza sutil desta HQ de qualidade tipicamente francesa sobre uma história tipicamente americana.
(Falando em música e quadrinhos, que tal dar uma olhada em outros artigos sobre o assunto?)
Memórias a parte, algum contexto extra sobre história americana e a cultura do período pode valorizar a leitura, mas não é absolutamente necessário. Blue Note é uma pequena obra-prima que se sustenta sozinha. A dupla de autores franceses já acerta logo na saída, escolhendo como cenário um dos períodos mais instigantes – e aparentemente inesgotáveis – para narrativas na história estadunidense: a época da Lei Seca.
Como manda o bom manual do puritanismo ianque, quando essa sociedade vê um problema, ela lida com ele de maneira enérgica. Boba, mas enérgica. Seguindo a esteira do boom econômico pós-Primeira Guerra, a boa moral ianque, na figura dos políticos nem um pouco interesseiros e do “cidadão de bem” do período, decide que nada deve atrapalhar o crescimento econômico do país, nem distrair o bom trabalhador americano. Assim, eles decidem cortar sua maior distração: o álcool.
Entra em ação a controversa Lei Seca, que proibiu o comércio e consumo de álcool nos EUA entre 1920 e 1933. É o tipo de bobagem que professores de história tentam explicar o tempo todo – justamente por causa desse tipo de exemplo – mas muita gente parece ter dificuldade de entender: quando se vive num sistema capitalista, a oferta se adapta à demanda. Mesmo que seja contra a lei. Quando se proíbe algo que possui uma enorme demanda, cria-se imediatamente um mercado paralelo ilegal onde o preço inflacionado obedece às normas do capitalismo primevo de livre-mercado, onde as regras são ditadas não por um senso comum de competitividade sustentável, por aqueles que conseguirem se sobrepôr aos seus concorrentes.
Como bem sabemos – ou, para quem ainda insiste em discordar desse tipo de evidência, deveria saber – é daí que surge o grande surto criminoso do país nessa época, sustentado principalmente por essa vertente do comércio ilegal. Surgem, no período, grandes nomes da infâmia criminosa americana; destacadamente, gente do naipe de Al Capone. Mas abaixo desses figurões políticos e da máfia, inúmeras outras vidas foram afetadas por esse conturbado período do país – algumas, para nunca mais se encaixarem na sociedade novamente. Notas eternamente fora da escala, se o amigo leitor assim preferir.
Acordes visuais
Mariolle e Bourgouin escolhem como símbolos gráficos das suas blue notes narrativas duas figuras, que nos apresentam as vicissitudes do período por dois diferentes pontos de vista: Jack Doyle, um irlandês turrão, é convencido a voltar aos ringues depois de cinco anos afastado, e o jovem guitarrista R.J. encanta com sua habilidade Vincenzo, o dono de um clube famoso na cidade e também um perigoso mafioso. Ambos representam, cada um da sua forma, o peso que os males de um país assolado pelo crime oriundo da Lei Seca e, pelas consequências da Grande Depressão, exercia sobre os indivíduos da época.
Há que se apreciar o simbolismo apresentado aqui. R.J. é um violonista de jazz, uma linhagem descendente do blues. O blues, por sua vez, é a grande égide musical sob a qual o escravos norte-americanos lamentavam sua sina – to feel blue, para o amigo leitor que possa não saber, pode ser traduzido como “se sentir triste”. A jazz carrega, na sua aurora, o espírito do blues, mas acende uma luz no fim desse túnel: é uma arte que valoriza o improviso, os atalhos e caminhos secretos que existem entre acordes e compassos. De muitas formas, apesar de ter surgido no blues, a blue note encontra sua exegese no jazz.
R.J. e Doyle entendem isso. Os EUA estavam tocando, 1933, um jazz para o seu país: existia uma ideia geral, mas acomodou-se ao que parecia um caos. É o cenário perfeito para o drama de acentos e velocidades alternadas composto pela dupla de autores franceses. Para um jazzista e um boxeador, o caos e a incerteza não são perigos. São oportunidades – atalhos e caminhos secretos – para o dinheiro, fama e sucesso. Muito mais importante do que entender o contexto e a narrativa dos personagens aqui, é entender o sentimento. Tal qual uma blue note.
De fato, a arte de Bourgouin reflete esse aspecto de maneira sublime. Escolher a música como metáfora para uma mídia visual é sempre um problema, mas o desenhista tira de letra (trocadilho absolutamente pretendido). Não apenas seu traço dá ambientação e tons precisos para representar os EUA do começo dos anos 1930, como, para representar o jazz de maneira visualmente ele habilmente solta sua mão para simbolizar, sinestesicamente, a liberdade e o preenchimento que esse estilo musical proporciona.
Não obstante, reencontra a dureza e o impacto necessário para os traços do boxeador protagonista. Para coroar o brilhantismo desse trabalho, tons de azul permeiam as emoções que emanam da narrativa, acentuando seu aspecto trágico e dramático. Demonstrar domínio completo da proposta tanto narrativa quanto metafórica de uma HQ é mostra da envergadura deste desenhista.
Blue Note honra sua metáfora e, assim como os EUA em 1933, quando Roosevelt encerra a Lei Seca, termina de maneira melancólica. Não existe redenção para aqueles que gostam de caminhar do lado errado. Ou talvez exista. Afinal, por brutal que possa ser, a escravidão americana, por exemplo, gerou alguns dos mais transformadores e belos gêneros musicais contemporâneos. A Lei Seca gerou um zeigeist que até hoje alimenta grandes narrativas literárias, cinematográficas e quadrinísticas. O trabalho de Mariolle e Bourgouin colabora para celebrarmos, a posteriori, esse trágico período americano.
Blue Note pode não ter um lugar na escala diatônica. Mas certamente terá na sua estante.