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Ânsia Eterna – Segundas intenções com boa execução!

Pode-se questionar as intenções de Ânsia Eterna, mas sua execução e relevância são irrepreensíveis

Peço permissão para uso da primeira pessoa. Menciono aqui, confrequência, minha experiência pregressa como professor de filosofia e humanidades e nas lições que ela me propiciou. É uma tarefa fadada ao inevitável fracasso moral. Alguma injustiça terá que ser cometida no meio do caminho. Com perdão pela falta de modéstia, possuo algum repertório literário e artístico – sempre foi meu campo de especialização – e por isso já conhecia o trabalho de Júlia Lopes de Almeida, autora dos contos transformados em quadrinhos por Verônica Berta no volume Ânsia Eterna. Entretanto, é com alguma vergonha que devo admitir que nunca mencionei seu trabalho em aula.

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O parágrafo acima não é um mea culpa aleatório. Ele é baseado em um reflexão feita a partir do posfácio de Berta para o volume. No breve texto, ela também oferece sua própria reflexão: explana sobre os possíveis motivos do absoluto desconhecimento sobre a autora em seu próprio país, e sobre a importância para o processo de planificação feminino em relação ao masculino através do resgate de figuras femininas histórica e socialmente relevantes; mas também contemporiza e faz a devida crítica à perspectiva de uma mulher branca e abastada da elite carioca do século XIX sobre questões nevrálgicas do período.

Diante disso, me pus a pensar sobre a minha própria relação com as artes e os campos de conhecimento que eu me dispus a lecionar. E me vi na mesma posição precária sobre a qual Verônica disserta nesse trecho e, possivelmente, na mesma posição em que Júlia se via no seu próprio período: escolhas são necessárias, e se é necessário escolher, algo sempre fica para trás. De fato, minha maior crítica em relação ao volume se dá justamente por isso: a artista decide fazer um resgate de alguns contos de Lopes, com o intuito de resgatar a memória do trabalho e da pessoa. Entretanto, acha necessário fazer publicamente essa reflexão sobre o contexto histórico – delicado, envolvendo temas como feminismo e racismo.

Ícone esquecido

Existe uma razão para isso. Júlia Lopes de Almeida é uma das maiores escritoras da história da literatura nacional, além de ser uma figura social e politicamente importante na organização do universo artístico e intelectual nacional. Almeida, entre outros feitos, foi parcialmente responsável pela organização da Academia Brasileira de Letras, em um período onde a produção artística nacional capengava devido a massiva importação e sobrevalorização de material europeu. No entanto, a autora acabou ela própria excluída da Academia – até 1977, membros eram exclusivamente masculinos.

Pior, seu próprio marido, Filinto de Almeida – que nem brasileiro era – acabou ocupando a cadeira de número três; e admitiu em cartas posteriores que sua esposa era mais digna do posto do que ele. Vê-se somente por aí o simbolismo que evoca uma figura como Almeida; e são realmente necessários esforços para trazer à tona a história e o trabalho de tais pessoas. Mas existe um limite tênue no processo de exposição das motivações de uma obra por parte de seu autor – como é o caso do posfácio de Berta.

Como leitor, considero uma posição questionável. A obra deve falar por si só, e estabelecer um posfácio como esse torna tanto a reflexão quanto a fruição da obra enviesada e engessada. Por mais que a postura de Berta em relação aos temas tratados pelos contos escolhidos seja apropriada, tratam-se de conclusões sobre as quais os próprios leitores devem chegar – correndo-se o risco de, como de fato ocorre, tornar a obra quase que estritamente utilitarista, limitando seu potencial artístico.

Ânsia Eterna

A consciência histórica é um processo eminentemente subjetivo, que ocorre espontaneamente quando os horizontes da obra e do leitor se encontram. Conduzir sistematicamente esse processo, seja a priori ou a posteriori, pode danificar ou mesmo eliminar esse momento de realização. Novamente, reforço que a preocupação da autora em refletir sobre a reprodução de certas formas de racismo enquanto resgata a figura de Almeida em prol do feminismo é moralmente apropriada, e tem uma função agudamente didática. Mas cobra-se o preço na forma de cerceamento de seu impacto hermenêutico.

Arte exímia

Focando-nos na peça em si, Ânsia Eterna trata-se de uma pequena obra de arte – dentro do juízo qualitativo dessa expressão. Narrativamente, a artista consegue traduzir com perfeição a linguagem literária para os quadrinhos – todas as figuras linguísticas e elementos mais profundos e abstratos dos contos são absolutamente perceptíveis na linguagem sequencial. E, de fato, apesar de curtos, os contos oferecem um bom material para questionamento e debate; abordando aspectos pontuais da realidade negra e feminina do final do século XIX. O último conto, A Caolha, é particularmente tocante – e, em muitos sentidos, perturbadoramente atual de muitas formas.

A arte, não obstante, se sobressai. Berta esbanja bom gosto na paleta de cores, cuidadosamente pincelada, dando um ar de artes plásticas para os quadros, além de criatividade na diagramação – o primeiro dos contos, epônimo da obra, se destaca nesses aspectos; curiosamente, talvez para compensar o fato de ser o menos crítico dos três contos escolhidos. As linhas e traços têm um caráter rústico, explicitamente um mistura de ideias barrocas com quadrinhos alternativos contemporâneos; uma mistura oriunda, possivelmente, de sua educação como ilustradora na França. Seja como for, a peça tem um aspecto inegavelmente brasileiro, sem deixar de ser eminentemente uma obra em quadrinhos. No que se refere ao esforço visual, Ânsia Eterna é irretocável.

Ânsia Eterna

Se ainda estivesse lecionando, provavelmente pediria aos meus alunos que dessem um jeito de alcançar esse volume. Não apenas é uma HQ de leitura bastante agradável, mas cujo contexto histórico, social e moral suscitariam debates bastante necessários – hoje talvez mais do que nunca. Mas tentaria deixar as conclusões inferidas pela autora para os próprios alunos.

Acredito que Júlia de Lopes Almeida, com todas as suas louváveis qualidades e inegáveis defeitos, concordaria que a emancipação e evolução intelectuais, também pretendidas por Verônica Berta em Ânsia Eterna, devem também partir dos nossos próprios esforços em nosso próprio tempo.

Sobre mais autores brasileiros pouco lembrados, dê uma olhada no nosso artigo sobre Murilo Rubião!

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