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É certo que a prosa de Philip K. Dick é algo que o distingue dentro da ficção científica, mas ainda é possível ir um pouco além nesta definição. Caso existisse alguma denominação de subgênero para enquadrá-lo, por lógica, esta seria ocupada somente por ele. Com preocupações e abordagens muito características e diferentes daquelas da Era de Ouro desta literatura, iniciada no fim da década de 1930, ele é – às vezes – associado à New Wave, que estourou nos anos 60 e 70, mas como já estava em atividade antes disso, acabou historicamente espremido entre as duas vertentes. Rebeldia é a alma do negócio, mesmo que involuntária, e este tipo de inquietação criativa e questionadora atingiu outros patamares nos últimos anos do autor.
É possível que VALIS (idem), publicado em 1981, ano anterior ao da morte de PKD, seja um choque ou uma decepção para o leitor que espera algo mais reconhecível como ficção científica, mas isso de forma alguma diminui a obra. Primeira parte de uma trilogia que ficou conhecida pelo mesmo nome do livro inicial, seguido por The Divine Invasion e The Transmigration of Timothy Archer (ele ainda deixaria The Owl in Daylight inacabado), é uma indicação clara da direção do olhar do escritor em seus derradeiros anos, além de um testemunho de uma jornada desesperada pelo seu interior e pelo transcendental.
Horselover Fat é um paranoico, sofrendo com complexos que o levam a relacionar-se com mulheres problemáticas, sentindo-se culpado até mesmo por atitudes delas absolutamente fora de seu controle. Atingido por um feixe de luz cor de rosa, que desencadeia uma série de revelações, como a doença oculta de seu filho pequeno e a percepção da verdadeira natureza do espaço-tempo, ele procura a fonte desta revelação e um Messias reencarnado. Esta busca passeia pelo misticismo gnóstico, judaísmo, budismo e cristianismo, entre outras doutrinas, criando uma teologia muito particular a partir desta colcha de retalhos. Entra no caldeirão até mesmo um satélite de natureza desconhecida, o tal VALIS – Vast Active Living Intelligence System – um sistema que pode ser responsável, entre outras coisas, pela transmissão mental que ele recebeu. O interessante é que este atormentado protagonista encara a possibilidade de tudo isso ser apenas fruto de sua loucura, aumentando o peso do caráter pessoal da obra, já que Philip K. Dick é o próprio Horselover Fat!
Acredite ou não, estamos falando de um livro autobiográfico, pelo menos na forma como o ele o encarou. A grande sacada narrativa é colocar nosso narrador onisciente, o autor, que também é um personagem, com seu próprio alter ego ficcional (ou seria o contrário?), por vezes se confundindo e referindo-se a Fat como “eu”, para em seguida corrigir-se e seguir a narrativa. As atribulações da vida de PKD estão ali, de uma forma ora alegorizada, ora mais literal, claro, mas isso ainda permite revelar muito de alguém que teve muitas perdas, tentou o suicídio, consumiu drogas em quantidades enormes – embora houvesse parado anos antes de escrever este livro – e, no entanto, isso ainda pôde ser utilizado como material pela sua enorme criatividade, junto com uma vontade incontrolável de desvendar o mundo visível e o oculto.
Procurando um correspondente audiovisual, VALIS se assemelha, de alguma forma, a um filme de David Cronenberg. O próprio cineasta canadense parece assumir esta proximidade conceitual, já que The Divine Invasion e seu escritor são citados nominalmente em seu romance de estreia, Consumidos. O fator “científico” fica restrito, de fato, ao satélite que dá nome à obra, o que dificulta uma classificação de gênero. Ironicamente, por mais estranha e irreal que a trama pareça, sutilmente, existe um componente humano admirável, já que é evidente a coragem de um autor que se coloca nesta posição vulnerável, aceitando qualquer julgamento ou má interpretação inevitável de quem olha e, infelizmente, só consegue enxergar desequilíbrio ali.
Conforme já ficou claro até aqui, apesar de um ponto de partida bem definido, a trajetória de Horselover Fat/PKD não têm uma estrutura narrativa convencional. O verdadeiro atrativo é analisar os vários tipos de personalidades que os personagens revelam, enquanto tentamos assimilar um texto que alonga-se demais nas costuras da exegese do protagonista/autor. Interessante por um lado, arrastado por outro, é o tipo de livro que demoramos um pouco mais para terminar, já que ele abre mão de criar um fio condutor definido. Em seu terço final, ganha mais força no encontro de Fat e seu grupo com seu objetivo e as consequências do evento, dando um toque de dinamismo que se segura até o fim desta jornada bizarra.
A edição da Aleph ainda conta com um apêndice contendo a HQ de Robert Crumb, A Experiência Religiosa de Philip K. Dick, publicada em 1986, que retrata a teofania do escritor que acabou nas páginas de VALIS. Uma inclusão mais que bem vinda, justificando a aquisição para qualquer admirador de Philip K. Dick. Se você ainda não conhecia esse trabalho de Crumb, pode dar uma olhada através deste link.
Por último, independente dos motivos que o levaram a escrever VALIS, a melhor forma de encará-lo talvez seja como o retrato de uma situação pessoal difícil e a oportunidade de entrar um pouco na mente de seu autor. Admitindo suas falhas literárias, ele ainda mantém a capacidade de provocar seu leitor, que vai inevitavelmente refletir sobre o que é descrito ali e, de quebra, pode ser que ainda se sinta bastante tentado a procurar a biografia de Philip K. Dick, mas esse é um assunto para outro dia.