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O Fantástico de Ray Bradbury – Arte e Imaginação em espelhos!

“A Imaginação deve ser o centro da sua vida” – Ray Bradbury

[…] Enquanto fazia os preparativos para me jogar do décimo segundo andar e acabar de vez com essa existência, ouvi a campainha. Eram 02h40 da manhã!!! Quando abri a porta, dei de cara com um homem idoso, meio barrigudo, usando óculos de armação preta grossa, camisa social, gravata vermelha e bermuda bege. Mesmo rouco pela idade, sua voz era amigável e convidativa:

– Olá meu jovem, podemos conversar por dois minutos? – Disse o visitante.

– Estou meio ocupado – respondi impaciente – Pode voltar amanhã?

– Mas amanhã você estará ocupado. – Respondeu o velho, me deixando boquiaberto.

Do que está falando, homem? – respondi firme, tentando transmitir confiança.

– Ora, você vai sair daqui voando e vai encontrar o que falta para escrever seu livro!

Voando?

Sim, lembra-se da história que escreveu quando era criança sobre um garoto voador? Você vai vivenciá-la agora, não?

Eu vou me matar! – Gritei.

Se no último segundo, antes do seu nariz atingir o asfalto, você se lembrar da história que escreveu, vai sair voando.

Quem é você e o que quer?

Ora bolas, sou Ray Bradbury! – Respondeu o homem. De fato ele parecia e muito com o Ray.

– Tá legal, meu nível de stress subiu tanto que estou imaginando coisas.

– Você sempre imaginou coisas, apenas nunca deixou coisas imaginarem você.

Olha, gostei da roupa, do tom de voz e até desse papo metafísico. Quase me convenceu. Pena que Bradbury já morreu.

– Não morri, estou em Marte.

– Claro. – respondi ironicamente. – Bom, com sua licença Sr. Bradbury, preciso me matar.

Vá em frente, mas lembre-se que nos momentos finais, toda sua vida passa diante de si. Uma hora você vai se lembrar do garoto voador.

Fechei a porta e fui direto para a sacada. Já estava decidido, não poderia deixar uma ilusão me impedir. Olhei para o relógio, não sei porque. Eram 02h42. Pulei. Um pouco antes de atingir o chão, meu corpo foi novamente para o alto.

Quando voltei para a sacada. Sentei e comecei a escrever.

 

Trecho que criei de um diário de uma pessoa fictícia criada por mim,

quando me sentei para escrever este artigo sobre Ray Bradbury.

Artigo - Ray Bradbury

Ray Douglas Bradbury (1920 – 2012)

 

Ray Bradbury: um dos autores mais inventivos do século XX.

Nascido em 1920, no estado de Illinois nos Estados Unidos, Ray Bradbury foi um dos romancistas e contistas mais importantes e prolíficos da história da literatura fantástica. Desde pequeno, já amava literatura – paixão que perduraria até o fim de sua vida, em 2012. Quando criança, se encantou com contos de fadas, histórias de aventura e dinossauros! Ray via os livros não como uma forma de escape, mas sim como uma forma de autoconhecimento. Começou a escrever suas histórias aos onze anos de idade.

Após sua graduação do segundo grau, em 1938, Ray encerra sua educação formal, mas continua a estudar por conta própria. Seu primeiro emprego foi como jornaleiro, trabalho que ficou de 1938 até 1942. Trabalhava durante o dia e frequentava a biblioteca pública à noite.

Artigo - Ray Bradbury

William Shakespeare, Julio Verne, Edgar Alan Poe, John Steinbeck e Edgar Rice Burroughs são algumas das principais influências do autor.

Foi em 1939 que publicou seu primeiro conto, chamado Hollerbochen’s Dilemma, em um fanzine de ficção-científica. Todavia, sua primeira publicação paga foi somente em 1941, com o conto Pendulum (escrito em parceria com Henry Hasse), que saiu na revista pulp Super Science Stories. Mas o estilo característico da obra de Bradbury, mesclando fantasia e ficção-científica com pitadas generosas de terror e suspense, tudo ricamente banhado por metáforas, surgiu com o conto The Lake, em 1942.

No ano seguinte, começa a trabalhar em um jornal para o qual contribuiu com vários contos. Em 1945, ganha o prêmio de melhor conto de ficção da América pela história The Big Black and White Game. Foi no início da década de 50 que Ray Bradbury publicou suas obras mais famosas, como As Crônicas Marcianas (The Martian Chronicles), de 1950, Uma Sombra Passou Por Aqui (The Illustrated Man), de 1951, e Fahrenheit 451 (idem), de 1953. Pelo último, ganhou o Prêmio Hugo de Ficção-científica.

A inventividade, enredo intrigante e temas contundentes fizeram com que as histórias de Bradbury fossem adaptadas para inúmeras mídias, desde séries televisivas e filmes até programas de rádio e quadrinhos! Ao todo, o autor publicou, além de poemas e ensaios, mais de 30 livros e 600 contos, colaborando também em roteiros para o cinema e televisão!

Artigo - Ray Bradbury

Mais de 27 histórias de Bradbury foram adaptadas pelas mãos de Al Feldstein, nos quadrinhos da EC Comics.

 

O receio de Ray Bradbury: sentir um calor acima de 232 graus celsius

Um dos aspectos mais incisivos e contundentes da escrita de Bradbury está em seus enredos distópicos, que possuem uma dose de realidade que torna sua leitura um tanto quanto cáustica para aqueles que projetam o que há de ser da sociedade. Sua descrição do futuro da humanidade é perturbadora, talvez até mais nos dias de hoje do que na época de seus escritos.

Tomemos como exemplo a distopia do já citado Fahrenheit 451. O mundo retratado na obra não é um um regime totalitário como em 1984, de George Orwell, ou um caos cibernético e informativo como em Neuromancer, de William Gibson. Ray Bradbury apresenta uma sociedade funcional, onde o totalitarismo é disseminado sutilmente através da indústria cultural, que “alimenta” a população com produtos de entendimento imediato e sem a menor possibilidade interpretativa, tornando os cérebros preguiçosos. Qualquer semelhança com a realidade, não somente a da época em questão, não é mera coincidência.

O totalitarismo apresentado ali é um dos mais assustadores, pois não estamos falando de um pequeno grupo que oprime a população. Estamos falando de uma ditadura da maioria, onde a própria sociedade condena aqueles que fogem do senso comum. Quando os bombeiros queimam livros no meio das ruas, são aplaudidos e apoiados pela população, que está pronta e eufórica para punir aqueles que são diferentes, mesmo parentes ou amigos.

Artigo - Ray Bradbury

Queimar propriedade intelectual era realidade antes de aparecer na ficção de Bradbury. Em 10 de maio de 1933, vários livros foram queimados em praça pública por serem considerados inconvenientes ao regime. Esse dia marcou o auge da perseguição dos nazistas aos intelectuais, principalmente aos escritores.

A popularização da televisão no ambiente doméstico norte americano, nos anos 1950, foi uma preocupação latente para o autor, que acreditou que as pessoas abandonariam os livros e iriam atrás de conteúdos menos relevantes intelectualmente. Felizmente, ainda temos livros e material cultural de qualidade – mesmo que haja necessidade de um certo garimpo.

Tal comportamento da sociedade, negando qualquer tipo de arte que abra margens para interpretação, também é maravilhosamente trabalhado no conto Usher II, de As Crônicas Marcianas (assista nosso vídeo sobre a coletânea). Nele, um homem rico dialoga com outro, contando que, no passado, tudo que não era imediatista deveria ser queimado. A população deveria pensar no aqui e no agora, nada mais. Com o avanço da narrativa, o personagem endinheirado apresenta sua casa, chamada Usher – sim, referência direta ao conto A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe – e todos seus moradores, dentre eles vampiros, lobisomens, elfos, entre outras criaturas fantásticas. Uma espécie de refúgio para esses frutos da imaginação humana. O final deste conto é emocionante na mesma medida que é triste e tem um eco muito forte com a conclusão de Fahrenheit 451. Obviamente, deixarei que você sinta esse impacto lendo o conto, caso já não o tenha feito.

Este receio em relação às escolhas culturais era latente na mente do autor de tal forma que, em diversas de suas histórias, temos não apenas referências, mas verdadeiras homenagens a outros autores e à literatura em geral. E elas não se restringem a simples citações, mas surgem como elemento funcional dentro da trama. A forma como isso é realizado eleva o nível da obra, sem cair no pedantismo.

A impressão que fica é que o autor usa sua escrita também de forma a proteger o legado dessa arte e disseminá-la ao mesmo tempo, pois, a cada autor mencionado, direta ou indiretamente, nós leitores sentimos vontade de conhecer ou revisitar suas obras.

Curiosamente, Bradbury escreveu Fahrenheit 451 no porão de uma biblioteca.

Artigo - Ray Bradbury

Fahrenheit 451 foi adaptado para o cinema em 1966, pelas mãos do cineasta francês François Truffaut

 

Fantasia e ficção-científica usadas para revelar o ser humano

O teórico e crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, diante da percepção que todas as pessoas atuam diante de um espectador (seja uma câmera, outra pessoa ou si mesmo), afirma que a única imagem verdadeira é a de um fóbico diante de sua fobia”. Afinal, diante de sua fobia, o indivíduo perderia qualquer tipo de controle, soltando-se de quaisquer amarras criadas pelo ambiente. Afirmação um tanto quanto interessante, mas Jean-Claude Van Damme Bernardet está se referindo apenas à imagem. Um registro visual de um momento. Momento este, convenhamos, totalmente condicionado.

Com todo meu respeito e admiração por Bernardet (leitura obrigatória para estudantes de cinema), Ray Bradbury mostra que menos de mil palavras podem valer mais que uma imagem quando tratamos do ser humano como um todo. Muitas histórias de suas histórias são uma mescla de fantasia e ficção-científica. O autor diferencia ficção-científica de fantasia dizendo que a primeira é “aquilo que será possível” e a segunda “aquilo que é impossível”. É claro que essa é uma maneira simplista de definir esses gêneros, mas, tomando por base essas definições, conseguimos compreender a estrutura básica das histórias do autor.

Ele usa o sci-fi para deslocar o ser humano de seu contexto atual e jogá-lo no futuro, ou no passado como no caso do conto O Som do Trovão (que você pode encontrar na coletânea As Melhores Histórias de Viagens no Tempo). A partir dai, o autor se utiliza da fantasia para explorar os aspectos psicológicos da humanidade, colocando o ser humano diante de algo fantástico e analisar seu comportamento e suas reações, despindo o homem e revelando seus maiores temores. Dessa forma, podemos entender algumas de suas obras como verdadeiros alertas, mostrando que o senso comum e a mentalidade atual, não serviriam para uma evolução digna da sociedade.

Mas não entenda Bradbury como um autor com senso de superioridade, de modo algum. Seus enredos possuem uma certa distância do leitor, de forma que não existe empatia com o protagonista, mas um afastamento necessário para ver a personagem como uma representação da humanidade e não de um indivíduo. E, é claro, que o autor se considera parte da humanidade.

Artigo - Ray Bradbury

“Meus personagens que escrevem os livros, eu não escrevo os livros. Todos os personagens me dizem: Me ouça!” – Ray Bradbury

No conto O Messias (que você, caro leitor, pode encontrar na coletânea A Cidade Inteira Dorme e Outros Contos), por exemplo, é ensaiada a forma como o egoísmo humano pode chegar a tal nível que supera até o radicalismo religioso. Na história, temos a perturbadora situação em que um marciano, considerado um messias, sofre uma imensurável dor física e sangramentos toda vez que realizam um ritual religioso. Mesmo depois de saberem que o alienígena não era um verdadeiro messias, um sacerdote, em sua busca desesperada por benção, continua torturando o extraterrestre para ser abençoado, abandonando qualquer forma de lógica, até tornando-se um herege, por um simples placebo religioso.

Na coletânea As Crônicas Marcianas, o autor afasta o ser humano de seu planeta natal para explorar os maiores temores e sua real natureza. Cada conto acompanha uma expedição diferente ao planeta vermelho que está sendo colonizado aos poucos pelo homem. Bradbury explora a fraqueza humana diante do desconhecido, que tenta de maneira frustrada tornar seu entorno mais familiar, sem saber que, no fundo, a humanidade é solitária.

Artigo - Ray Bradbury

“Faça coisas que você ama. Ame as coisas que você faz.” – Ray Bradbury

A esperança reside na imaginação!

É claro que nem tudo possui um tom pessimista. Em diversas histórias, o autor coloca o fantástico como a verdadeira esperança (vide meu breve conto lá em cima). Seja no mundo mágico em que uma criança acredita viver, ou no dragão dentro da garagem, a imaginação é o grande farol que guia os personagens de maneira intensa e pessoal.

Em suma, a obra de Bradbury fala sobre o ser humano em um nível muito peculiar. Existem cicatrizes que mostram nossos erros, mas também existe beleza nos traços peculiares e individuais de cada um. O autor afirmava que nos livros encontrávamos nós mesmos e que nós buscávamos na arte um espelho. Em sua própria obra, isso é mais que verdadeiro. Sua escrita ácida se iguala a seu caráter positivo, sua criatividade e seu bom humor.

Ray Bradbury deixou sua marca não só na literatura, mas na cultura em geral. Influenciou diversos autores, entre eles Rod Serling, Harlan Ellison, Joe Hill, Audrey Niffenegger, David Eggers, Neil Gaiman, e muitos outros.

Alguns destes, de tão gratos, compõe o quadro de artistas do quadrinho Teatro das Sombras – Contos Fantásticos Além da Imaginação (Shadow Show: Stories in Celebration of Ray Bradbury). Publicado no Brasil pela Editora Mythos, a graphic novel é uma verdadeira homenagem a este grande autor.

Quem sabe, se você tiver uma boa imaginação e dar ouvidos a ela, Ray Bradbury não vem trocar uma idéia com você?

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