Com eficiência, Psicose prova que ainda sabe abalar seu leitor
Mesmo 62 anos depois de seu lançamento, o livro escrito por Robert Bloch traz nuances que impressionam e deixando a pergunta: Como pode Psicose ainda contribuir para a literatura depois de tantas décadas?
Protocolarmente, à sinopse: Norman Bates administra um motel numa estrada pouco utilizada pelas pessoas. Controlado à mão de ferro por sua reclusa mãe, em sua eterna solidão ele se esconde na bebida e na literatura até que Mary Crane aporta em seu estabelecimento. Após uma tragédia, Norman entrará em rota de colisão com outras pessoas enquanto prossegue vítima da loucura da matriarca.
Psicose foi lançado pela Editora Darkside em 2013 e tem 256 páginas.
OBS: Este artigo se restringe a falar exclusivamente do livro e não da adaptação cinematográfica feita em 1960 por Alfred Hitchcock.
Os Anos 40/50 na literatura foram incríveis: Ernest Hemingway, George Orwell, Ray Bradbury, William Golding, a britânica Agatha Christie, entre outros. Esse período prolífico se deve, a princípio, a dois fatores: O primeiro deles é que muitos dos autores que explodiram nesse período são frutos diretos da literatura Pulp Fiction, populares nos anos de 1900 até a década de 40 e que permitiam uma expressividade maior da própria criatividade. Já o segundo motivo, este bem mais subliminar, é o caldo cultural que efervescia quase que diretamente de um Pós-II Guerra Mundial. Países como os EUA e a Inglaterra saíram vitoriosos e inclusos num modelo de confiança mundial e prosperidade financeira, mas ao mesmo tempo criava um parâmetro de imperfeições sociais. Uma guerra muda pessoas, traumatiza e, ao mesmo tempo, cria-se um espetáculo midiático/governamental onde há um esforço para que as coisas voltem à normalidade com rapidez. Obviamente não seriam estes os únicos fatores, sequer definitivos, mas servem de pano de fundo para colocar, no entremeio, Robert Bloch em uma obra tão arriscada quanto foi Psicose, lançado em 1959.
Apesar de toda bonança que o período citado acima trouxe, concomitantemente, havia uma certa dicotomia auxiliou numa renovação literária naturalista que se seguia justamente quando a esperança estava à tona. Essa criatividade que se expandia exigia a transgressão e o questionamento. Ao falarmos de Psicose, é preciso pensar, sobretudo, na audácia do autor ao questionar o americano médio na figura de Norman Bates, ao transformar o homem de meia-idade, até então o bastião da sabedoria e charme dentro das mídias, num obeso, careca e fracassado dependente emocional da mãe para sobreviver enquanto busca nos pequeninos prazeres em segredos. Estas deturpações não se aplicam apenas a Norman, mas como aos personagens que orbitam sua saga: Mary e Lila Crane, além de Sam Loomis, o noivo de Mary. Ao mudar seus status quo e preenchê-los de pequenos defeitos e outros delitos, Robert Bloch usa do intrínseco para falar da taxidermia que Norman cita apenas uma vez em toda a obra, mas que é sentida diversas vezes, com um objetivo muito específico. Esvazia-se daquilo que não vale mais e coloca algo novo. Bloch, felizmente, não se preocupa em ser lúdico quanto às essas metáforas, entretanto, faz de seu texto um processo de didatismo suave ao conseguir manter o foco do leitor numa trama rica em detalhes.
Este ponto traz o que, talvez, seja o tema mais importante da obra: Com um Narrador-Onisciente abrindo pensamentos de forma vagarosa, percebemos que jamais conhecemos os personagens (e por que não, também, as pessoas?) e que qualquer tipo de entendimento não é puro e sim diluído em outras nuances. Simbolicamente, demonstra que mais aprofundamento significa ser necessário entender mais. Nisto, cabe aqui explicar: Robert Bloch expõe com clareza o raciocínio de que quanto mais nos aproximamos de algo simples visto de longe, mais complexo ela fica, se não em sua trama-base, nos psicológicos que fazem a história se desenvolver. E a despeito de spoilers sobre a história, que já foram tão explorados na mídia desde 1960 e discutida sobre a adaptação literária de Alfred Hitchcock, este texto não se dará ao trabalho de estragar a surpresa daqueles 5% de pessoas que não conhecem os brilhantes e enervantes plot twist’s do livro. Não é preciso falar disso para perceber os atos complexos de Bloch em sua escrita aqui.
A obra também aprofunda algumas questões do Complexo de Édipo na relação Norman/Mãe. A teoria do psicanalista Sigmund Freud é a base para o desenvolvimento da psique do protagonista (e não se enganem: Norman é o destaque neste livro mesmo quando não é foco do capítulo) e de como a simbiose entre ambos passa de tragédia – assim contada na história de Édipo – para aceitação, ainda que analisada à lupa, tenha conflitos. Robert Bloch começa escancarando a questão, mas, após a negativa da Mãe para o assunto, narrativamente falando fica cada vez mais discreto. Há todo um Q procedural para que aponte ao texto algum tipo de reflexo do momento de Norman, o que, a olhos atentos, mostra que compreender um homem sentimentalmente afetado pela mãe é mais do que constrangedor, mas perturbador dentro do suposto e inicial minimalismo deste relacionamento abusivo que busca celebrar a misantropia pontual como uma maneira de permanecer ligado àquilo que importa.
Sendo um pouco mais generalista no comentário, Psicose se vale de cada capítulo para introduzir e trabalhar conceitos e restrinjo este elogio excluindo-o apenas de um único momento que serve mais como preâmbulo para o início do clímax. Necessário, porém aquém, ainda que longe de interferir no andamento do desenvolvimento das temáticas. Seja em Norman, Sam, Mary ou Lila, diferentes aspectos se revelam à luz das necessidades de Bloch. Normalmente isto é condenável, mas depende especificamente de como é feito e aqui há mestria no processo com organicidade e sem excessos. Conforme já dito, as pequenas transgressões nos estereótipos americanos alcançam os objetivos e conseguem trazer mais profundidade. E mesmo que em determinados momentos estes pontos sejam explícitos, é no implícito que funciona. Não há modus operandi padrão aqui. Cada indivíduo literário é único e passa o realismo necessário para que engaje interesse. É impossível não sentir pena de Norman, ou questionar certas ponderações de Mary ou Sam. Mesmo Lila, da qual sofre com maiores picos nas variações de atitude, acaba se tornando justificável aos olhos do leitor.
Gêneros e virtudes
E tudo dito até aqui culmina em analisar Psicose como uma obra de suspense e terror. É possível definir que o autor é econômico ao escolher não esticar demais os momentos de tensão. Isto auxilia no dinamismo da leitura, enquanto evita subestimar o leitor com mistérios infindáveis. Robert Bloch consegue inserir algumas questões sem sequer fazer que o mesmo leitor compreenda que estão ali, o que tornam as surpresas bem mais explosivas, ainda que, eventualmente, potencializadas com um pontual gore inferencial. Outros elementos ali dispostos fazem parte de uma conjuntura maior e que fariam sentido numa releitura, assim como já falei uma vez em Eu Estou Pensando Em Acabar Com Tudo, porém, diferentemente da obra de Ian Reid, que se dispõe a explicar sem querer explicar, Bloch escancara tudo ao seu final. Se perde um pouco a aura de mistério, ainda que receba a luz interessantíssima da psiquiatria, ganha um capítulo final instigante e poderia dar um novo tom. Porém, é um hipotético tom que se torna desnecessário. O desfecho de Psicose se basta tão bem que é possível fechar o livro de maneira satisfatória.
Isto posto, Psicose é um livro que diz muito nas entrelinhas e com uma força descomunal no explícito. Longe de ser apenas um suspense, faz de suas páginas uma apoteose narrativa à construção de Norman Bates. Entrega agilidade, escopo e, acima de tudo, alma. Escrito com a frieza de um homem com plena ciência literária, e em contrapartida, com a febril gana de surpreender, Robert Bloch foi um escritor que fez história em sua jornada. Tão denso quanto intimista, este livro ainda segue poderoso e independente de qualquer adaptação.