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Lolita – Uma ode ao amor pela escrita

Polêmico e realista, Lolita é o melhor retrato da literatura que choca com conteúdo

Falar sobre pedofilia, um tema extremamente caro e sensível à sociedade, pode demandar um tipo de finesse e cuidado que alguns escritores passam a vida buscando. E Vladimir Nabokov, ainda bem, jogou todo esse zelo às favas em Lolita.

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Postimeiramente, à sinopse: Humbert Humbert é um escritor francês de meia idade radicado nos EUA e que se apaixona perdidamente por Dolores Haze, de 12 anos, a filha da senhoria da casa onde mora. A partir disto, inicia-se uma relação conturbada entre ambos que vai se tornando cada vez mais densa e perigosa. Preso na cadeia por assassinato, ele aguarda julgamento enquanto escreve suas memórias de como chegou aonde está e analisa cada passo de sua jornada.

À priori, vamos a dois pontos-chave deste texto que acho importante citar: O primeiro deles é que spoilers significativos da obra serão citados e isto se dará porque é imperativo falar deles para uma maior compreensão tanto da trama quanto dos conceitos enraizados de Vladimir Nabokov. O segundo ponto é que este mesmíssimo texto não vai sequer se dar ao trabalho de criar algum tipo de defensoria ou promotoria sobre pedofilia e suas complexidades ou consequências. O que haverá aqui será algo de cunho analítico e tão somente isto. Cada um sabe onde está seu limite e o que, literariamente falando, topa ou não, porém já aviso que este livro lida profundamente com a sensualidade interpretada pelo protagonista, porém está longe de ser uma leitura escatológica ou erótica.

A edição analisada é a lançada pela Editora Alfaguara, lançada em 2011 e contém 392 páginas.

Vladimir Nabokov é um escritor russo nascido em 1899. Permanecendo no país até 1921, foi para a França, onde viveu até 1937, também residiu nos EUA por todo período de 1940 e, a partir de 1959 – nas quase últimas duas décadas de sua vida – viveu na Suíça, falecendo em 1977. É importante analisar como, apesar do autor ter uma formação essencialmente russa, tanto sua convivência francesa, quanto a sua prosa em inglês têm peso na escrita em Lolita. A literatura russa com uma certa dramatização e crítica social, a literatura francesa que romantizava com muita crueza e o americanismo, padrão a ser quebrado, debochado e esmiuçado. Apenas isso é o suficiente para que seja feita uma longa análise e não é possível delimitar a obra à pedofilia ou a uma “possível” normatização que, teoricamente, o livro apresenta. Há uma pobreza muito grande nessas análises de resenha que se resumem a dizer “perturbador”, “abuso” ou “criminoso”.

Veja bem, leitor: Não sou o Santo-Graal da verdade, porém tenho um certo problema quando o reducionismo impede a amplitude de bons livros. Portanto, se Vladimir Nabokov é lembrado, pela maioria apenas pela polêmica do tema, eternamente hei de me recordar dele pela complexidade. Ao criar um protagonista que encarna à beira da perfeição o Narrador Não-Confiável, Humbert Humbert, ele questiona a moralidade social, o trauma e suas consequências, além da aceitação do que se é. Provocativo? Muito provavelmente sim. Entretanto, é vital que tenhamos em mente que o personagem central é um vilão em construção. Desde as primeiras páginas até seu final, Humbert é sistematicamente trabalhado para o clímax em sua maximização interna até a maior das conclusões (da qual falarei mais a frente).

Seria uma mentira deslavada falar que este livro não trata sobre relacionamentos abusivos ou de uma tentativa de normatização de vários crimes. Por isso mesmo o grande trunfo do autor está em trazer Humbert Humbert como o fiel narrador da obra. Nabokov se aprofunda tão peculiarmente na psique do protagonista que é quase possível compreendê-lo. E ao usar o termo “compreensão”, estou longe de dizer “aceitar”. E esta é uma das muitas armadilhas literárias que são colocadas durante a leitura. Você não é compelido a abrir os braços para as imperfeições criminosas do protagonista, porém é obrigado a acompanhá-lo. Talvez a única imposição de Nabokov seja a passividade do leitor. Não aceite o personagem pelo o que faz, mas aceite quem este homem é e porque ele se tornou algo abjeto.

A começar pelo prefácio, escrito pelo personagem “editor” do livro, John Ray Jr., à priori soa como uma forma elegante do autor em defender sua obra das críticas, mas sob um olhar mais cuidadoso é possível perceber que ele usa John de maneira expositiva para demonstrar que Dolores Haze é a vítima da história. Enquanto há termos que chamam a mesma de “heroína”, há outros que colocam H.H. como “lepra moral”, “anormal” e “diabólico”. Porém, isto não é tudo o que extraímos. Também é possível ver que Ray se coloca de maneira isenta exageradamente, por vezes até duvidosa com Nabokov trabalhando bem, desde seu início a questão do puritanismo. Somos realmente assim, ou de perto há algo que escondemos? Já falei um pouco sobre isto na minha crítica de Psicose, mas aqui esta função narrativa não faz apontamentos ao leitor. Contrariando a tentação de induzir conclusões o que sentir, Vladimir acaba indo pela direção oposta, inferindo qualquer impressão e se distanciando de algum tipo de sentença definitiva. Se à época esta decisão soaria como algum tipo de aceitação do mesmo, hoje parece muito mais um espólio onde os herdeiros, nós leitores, precisamos decidir o que fazer com isto.

Provavelmente a maior impressão que fica é que John Ray Jr. acaba agindo justamente como o leitor que vê o livro Lolita superficialmente, o famigerado afegão-médio: sabe o que esperar, se choca com o que lê, se presta a condenar veementemente o protagonista e, ao fim, não para de lê-lo e aceita-o apenas para depois se prender à superficialidade. E há uma doce ironia nisto. Ao mesmo tempo que o politicamente correto acena para nós, há algo escondido que insiste que continuemos a testemunhar os males de Humbert. Tudo isto em nome da leitura. E se a obra é realmente execrável, por que, quase 70 anos depois de seu lançamento, ainda gastamos dinheiro nisso?

A partir daí, ao fim do prefácio, o que vemos é um Humbert Humbert, assumidamente problemático, jogando todo o conceito anterior por água abaixo de maneira articulada, extremamente culta, quase sedutora e abertamente intelectual. Há uma gama de adjetivos positivos para dar a ele. E este sentimento aflora quando lemos todo o seu linguajar erudito e denso. H.H. é elegantemente hiperbólico e Nabokov enfatiza isso constantemente. Portanto, como autobiógrafo, Humbert Humbert se coloca de maneira idílica e muito autoindulgente. A maneira como ele prende o leitor é milimetricamente calculada para gerar, caso a empatia falhe, ao menos um interesse genuíno em sua saga. E seja pelo ranço ou pela amplitude, ele consegue.

Assim, com plena ciência de cada uma de suas qualidades, Humbert Humbert é carregado com uma grande dose de prepotência, um fator predominante para a narrativa duvidosa, além da construção de seus argumentos e falta de culpa. Isto é apresentado de maneira relativamente rápida ao leitor, tornando seu Arco de Identidade não um final em si mesmo para que a história transcorra, e sim como um objeto de estudo trabalhado e esmiuçado durante toda a obra até seu final. Por isso mesmo, apesar de Dolores ser vitimada pela maldade travestida de amor que H.H. carrega em si, a maior parte do foco da narrativa em 1ª pessoa é direcionada a si e nas consequências que fatores externos causam em sua persona. Nitidamente egoísta, o protagonista se dá o direito quase pétreo de conclamar a atenção do leitor e se apresentar, mesmo assim, da maneira mais superior possível em detrimento aos personagens que orbitam sua história. Diante de seus possíveis leitores, talvez por ter escrito sua história da cadeia, Humbert soe até subserviente.

Interessante perceber que o Húbris e Ate (Arrogância e Erro) mostrados por Vladimir Nabokov são tradicionais diante da composição narrativa despendida a Humbert. O que muda é a intensidade mesclada à classe do personagem e a sua diluição à uma trama que não chega a ser longa, porém com tantos detalhes que a deixam extremamente complexa e com inúmeras nuances. Ao mesmo tempo que lida tão profundamente com Naturalismo – com o psicológico como objeto – , focando na parafilia do personagem, é paradoxal que se aproxime tanto do Classicismo com alvo nas imperfeições enquanto a história é pano de fundo ao desenvolvimento real. E neste ponto, cabe um adendo: Etimologicamente, Lolita não é um romance no sentido romântico do termo e mesmo se encaixando no gênero Romance com suas características básicas, há uma proximidade muito grande das Tragédias gregas. Toda a construção narrativa do autor gabarita o livro a isto. Então, o Nêmesis (Castigo) é vagaroso, mas sentido. Nabokov aqui vai do etéreo à sublimação. O que começa discreto e sem muita importância, vai se tornando cada vez maior e incomodativo. Dolores, evidentemente, é o que destrói H.H. seja pelo desprezo ou abandono. Por isso a maior punição dada não está em ser preso após cometer assassinato, mas em saber que se apaixonou por uma mesma Dolores envelhecida ainda que tenha definido muitas páginas antes que uma garota perderia utilidade para ele após os 14 anos.

E é justamente este o maior Calcanhar de Aquiles de Humbert: Estar preso ao passado, como um cárcere eterno. E aí entra o papel de Annabel Leigh, o primeiro amor da adolescência do protagonista. Ambos com 12 anos, descobrindo juntos os prazeres e amores, mas com a interrupção do romance com a morte de Annabel por Tifo. O autor não se detém a explicitar quanto isso traumatizou o personagem principal, mas permite-se tratar das consequências por todo o livro. E ao ter uma inconsciente noção de sua situação em ser incapaz de sair disso, H.H., ao se apaixonar por Dolores, tenta fazer-se Annabel, não tanto no sentido de amor correspondido, mas através do medo da perda. De maneira visionária, Vladimir Nabokov está falando de maneira claríssima da posteriormente conhecida Síndrome de Estocolmo, algo que só seria descoberto pela psiquiatria a partir dos anos 70, quase vinte anos depois do lançamento de Lolita.

A constante necessidade do protagonista em comparar Dolores à Annabel é deprimente, mas infelizmente, extremamente identificável. O trauma da perda, o sofrimento, um luto interrompido constantemente pela dor faz de Humbert alguém que nunca supera e que precisa encontrar muitas vezes seu “amor de Riviera”, como ele chama Dolores. O personagem faz, de maneira extrema, claro, valer-se da velha máxima (e que não funciona): Um amor se cura com outro. Mas, obviamente, este amor é de H.H., pouco se importando com a reciprocidade e colocando sua “amada” num pedestal forçado. Não apenas falando de sexo, mas ao querer perpetuar sua Annabel através do incesto por, pelo menos duas gerações subsequentes, algo que ele nunca chega a efetuar, importante deixar claro.

Lolita - Vladimir Nabokov

Vladimir Nabokov (1899 – 1977)

O que me leva ao último ponto sobre a análise de Humbert Humbert que é todo o seu fracasso em vida ao se exercer. Eterno teórico, sem conseguir praticar quase nada do que tenta, com exceção do sexo com Dolores e seu cárcere, tudo o que vemos é um homem alquebrado e vivendo de pontos de vista. O seu grande ápice é matar Clare Quilty, o homem pelo qual Dolores se apaixonara e que seguira a ambos em diversas ocasiões durante suas viagens. Por isso, narrativamente, Nabokov alonga esta circunstância ao máximo, permitindo que H.H. pudesse desfrutar de uma discussão moral com seu contraponto enquanto controla tudo até atirar no homem que, posteriormente, abandonara Dolores depois dela fugir de Humbert. E ao perceber isso, que “destruiu a vida” de Dolores, ele decide matar aquele que “quebrou seu coração”. Essa catarse de conclusões faz de Humbert alguém que, ao menos no final, se liberta de Annabel e abraça a única coisa que lhe resta: a capacidade de fazer o mal. É possível também interpretar a morte de Quilty como uma metáfora comparativa de Humbert à personificação do Tifo. H.H. perdeu Annabel para uma doença e encarava Q como outra mazela que, ao menos desta vez, poderia poupar o mundo. Há altruísmo em H.H.? Isto é interpretativo, mas na visão deste crítico, há uma noção de justiça em Humbert que faz com que se puna através da execução alheia, ao menos em seu final, crendo que, para Dolores, seria a ressignificação e libertação de dois males que definiram sua triste vida.

Então, eis um golpe de mestre que Vladimir Nabokov nos dá. Se estamos vitimizando Dolores, como lidamos com as decisões que a tornam uma personagem conscientemente autossexualizada? Afinal, a decisão e atitude de beijar Humbert Humbert pela primeira vez foi dela, o joguete manhoso para exigir um segundo beijo foi dela. Quem conduz a conversa que leva ao primeiro sexo com seu padrasto foi ela. Dolores aceita os papéis de Lolita e ninfeta por qual motivo? Estar inicialmente apaixonada por Humbert, por estar sozinha no mundo após a morte de sua mãe Charlotte ou por amar Clare Quilty e não poder vê-lo após ser retirada da colônia de férias que o conheceu? Este é um questionamento complexo e sem uma resposta definitiva. Dolores não deixa de se mostrar como uma adolescente impulsiva, de temperamento forte, com necessidade de ser aceita que beira ao histrionismo, o que a torna carente e frágil nas entrelinhas. Obviamente, isto não justifica os abusos sofridos na mãos de Humbert e Quilty num contexto social, porém, dentro do escopo da história, faz sentido que contribua para a narrativa.

Dolores é manipulativa, impositiva e ao mesmo tempo com vivacidade de uma jovem que precisa existir por contra própria, mas que vive debaixo de jugos. Sua mãe Charlotte tinha uma relação conturbada com a filha que se tornou ciúmes doentio depois que casou com Humbert. Já Humbert era abusador e a isolava do mundo. Clare Quilty quebrou sua confiança pelo coração. Por isso, ao final do livro, ela encontra em Dick, seu igualmente jovem marido, um porto seguro. E mesmo assim há um jugo nisto: a miserabilidade das situações. Grávida e sem dinheiro, Dolores, não mais uma simples Lolita, ainda chama H.H. de pai, com lapsos sentimentais ao estender a ele o termo “meu amor” e mesmo assim, dizer que preferia voltar a Quilty. Tudo isto passado para terminar em uma compensação com quatrocentos dólares e um cheque de quatro mil de seu “pai” para recomeçar a vida. O maior castigo dado por Dolores no desfecho foi mostrar ao pai que seguiu sem ele, independente dos traumas que disso advinham.

Fatores externos, mesma finalidade

Outro ponto interessante em Dolores, mas partindo de contextos extrínsecos culturais e sociais, é perceber que homens e mulheres a veem de maneira diferente no papel de personagem e antítese. Como homem, vejo-a a partir do ponto de vista de um vilão que é hedonista que usa o termo “amor” para justificar as atrocidades que faz com ela e todas as complexidades já citadas. Já uma mulher poder ver a tanto Dolores quanto Charlotte como alegorias dos excessos de um homem diante de uma época em que a mulher deveria, sob todo custo, estar submissa à uma sociedade machista e autoritária que podia tudo, ainda que maximizada à visão de Humbert Humbert. Obviamente as visões vão mudar de pessoa para pessoa, mas servem para mostrar Vladimir Nabokov foi tão perfeito em sua escrita que consegue passar impressões diferentes com o mesmo texto.

Isto posto, Lolita é um livro de semiótica difícil, com uma construção complexa e peculiar, sem apegos às convenções e a personagens fáceis e tecnicamente pesado, quase lírico e sem didática. Vladimir Nabokov não se permite limitar ao socialmente aceitável e conseguiu servir de base para muitas coisas que vieram depois com o passar dos anos. Lidar com temas como pedofilia, abuso, abandono, luto e trauma com uma escrita tão preenchida de qualidades, faz do autor um dos grandes que provam que nem tudo é preto e branco e que exigir do leitor esforço, paciência e sem uma garantia de cumprir expectativas narrativas, mas entregando um processo textual poderoso. Um clássico tão absoluto que merece muito mais do que as habituais resenhas cruas e simplórias.

E assim termino minha participação no Formiga Elétrica. Em um ano e quatro meses foram 38 textos buscando dar uma visão crítica a vocês. Agradeço ao espaço dado, à confiança despendida e aos bons números devolvidos aos meus escritos. E cabe, em especial, agradecer ao Daniel Fontana que sempre me deu total liberdade para ignorar completamente o senso comum de opiniões sobre livros e dar as minhas impressões e – frequentemente – palavras duras. A literatura merece ser contemplada, mas acima de tudo, analisada. Longe de ser um adeus, deixo aqui meu até logo e meus agradecimentos a todos os leitores. Parafraseando Andrew Martin, pela última vez, isto fica feliz em ser útil.

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