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Mathilda – Entre o amor e a polêmica!

Em Mathilda, Mary Shelley humaniza um tabu e suas consequências

Em 1820 Mary Shelley (que escreveria Frankenstein depois) entregou o original de Mathilda ao seu pai e também editor William Godwin, que achou o manuscrito chocante por falar de incesto e pelos traços de sua própria filha na protagonista-título. Então, decidiu nunca devolver o original e deixar a história esquecida no tempo. Foi publicada como obra póstuma pela primeira vez quase 140 anos depois de sua feitura e aqui será feita uma de suas possíveis análises.

Mathilda - Mary Shelley

Como sempre, à sinopse: A inglesa Mathilda cresce sob os cuidados de uma tia que mora na Escócia, após a morte de mãe, vitimada durante seu parto. Seu pai, enlutado, foi embora e viaja pelo mundo sem dar notícias. Após o retorno do patriarca, 16 anos depois, a adolescente encara um homem enlutado e o desejo carnal pela própria filha, o que resulta numa espiral de insanidade da qual ela pode nunca se recuperar.

Mathilda teve edição lançada em 2015 pela Editora Grua e contém 160 páginas.

É gratificante ler obras que apenas são o que são. Elas não se propõem a supervalorizarem nada além do que foram idealizadas, sequer operam numa necessidade súbita de alcançarem as massas. A verdade é que livros escritos com pretensões que se fundamentam apenas à própria literatura são, inegavelmente, os melhores.

E este é o caso da novela romanceada escrita por Mary Shelley, que faz deste livro uma profusão de elementos narrativos que a torna potencialmente importante. Não se engane com o peso do século XIX que acompanha a escrita: aqui reside uma história majoritariamente feita com voracidade, porém, de maneira cuidadosa, proficiente e que merece ser analisada em sua fundação narrativa e suas deturpações.

Aqui há um bom exemplo de uma obra Romântica e suas características, como por exemplo: individualização da protagonista em sua história e desenvolvimento de um ego massacrado, o pessimismo e seus escapismos – porém inicialmente contrastados com a esperança – e o nacionalismo inglês em sua colonização sobre a Escócia com historicidade pontual. Shelley usa esses pontos de maneira discreta como uma forma de transformar sua personagem privilegiada em alguém que causaria algum tipo vínculo com o leitor da época, ou seja, a aristocracia, lembrando que naquele período não havia sequer um esboço de uma hipotética universalização da leitura, sendo reservada apenas a quem tivesse condições.

Mas é aí que as distorções mais evidentes e eficazes começam especificamente usando do Gótico para passar o choque e a mensagem desesperançosa do livro.

A sexualidade é um dos primeiros pontos que chamam a atenção justamente pela escrita comedida. Shelley flerta com o desejo idealizado da adolescência do século XIX, mas recua constantemente para que o baque da perda da inocência cause maior impacto no momento certo. Esta entrelinha é bem trabalhada a ponto de tornar Mathilda, inicialmente, uma personagem carente, o que em seu isolamento na Escócia possibilita dar a ela um vislumbre criativo de imaginação à felicidade que tanto ansiava, porém propositadamente evasivo.

É possível perceber uma mudança de status quo da protagonista que transita do Romantismo com o caráter puro e limpo para uma Heroína Byroniana (personagens dúbios, mas que causam simpatia) durante a história. Ao usar o trauma para dar a mudança de tom da personagem, Shelley também dá uma válvula de escape para que a loucura, enfim, prevaleça e, mesmo assim, permita um charme decadente que encanta e, concomitantemente, entristece. Essa caminhada de um ponto a outro é ligeiramente rápida, mas aponta bem para uma preocupação da autora com as credibilidades das situações, o que torna a personagem-título dolorosamente vitimizada.

Ainda que a natureza, citada com frequência, seja uma representante metafórica da busca de paz e relação idealizada de Mathilda, o que importa é o fracasso da protagonista perante. Apesar deste elemento de reflexão bucólico-narrativo ter a pureza romântica do gênero, há uma boa comparação na obra de Mary Shelley com significação do interior ante a contemplação, que retrata exteriormente sua vagarosa degradação. E isto entra em contato direto com a linguagem gótica da autora ao falar do engrandecimento do extremo, subversivamente, de maneira poética e melancólica (influência de seu marido, o poeta inglês Percy Bysshe Shelley). Não por menos, ela cita constantemente trechos de autores como Shakespeare (1564 – 1616), William Wordsworth (1770 – 1850), Dante Aliguieri (1265 – 1321), Samuel Taylor Coleridge (1772 – 1834), Edmund Spender (1552 – 1599), John Fletcher (1579 – 1625) e Francis Beaumont (1584 – 1616), todos estes com obras trágicas.

E isto traz à tona a morte sob a ótica do suicídio. Mas diferentemente do Romantismo que trata esta como última saída para uma história, Mary Shelley abraça a possibilidade desde suas primeiras páginas mostrando que a protagonista está perdida no pessimismo ainda que guardiã de suas memórias. Ela vê a si mesma como uma escrivã fiel aos fatos e até prepotente neste papel, apesar de, nitidamente, ser uma Narradora Não-Confiável já que consegue, à certa medida, romancear de maneira pueril tanto o amor de seu pai quanto a pureza de uma possível união de ambos post mortem.

Mathilda - Mary Shelley

Retrato de Mary Shelley por Richard Rothwell.

A insanidade e o choque do trauma

Fora tudo isto, é possível perceber como Shelley usa o Utilitarismo (teoria do caminho natural que define causas boas para consequências boas, assim como causas más para consequências más) racionalizado por seu pai, William Godwin, assim como mescla-o com o Pré-Determinismo de maneira interpretativa. Pode-se deduzir que o início da desgraça de Mathilda se iniciou com a morte da mãe e do eremitismo paterno por 16 longos anos, ou até mesmo de seu retorno e subsequente paixão pela filha por nunca superar o luto da esposa, ou a revelação do desejo que escondeu após meses de convivência entre ambos e, mais além, ver o início de sua sina a partir da inevitável tragédia que se abate com o remorso do pai. Mesmo estes acontecimentos podem ser vistos como deterministas à outras situações dentro do microverso dos personagens envolvidos assim como suas causas primordiais utilitárias.

textualmente, o livro é feito de maneira calculada. Como a protagonista faz o papel de narradora, os sentimentos são colocados de forma subliminar. As sentenças constantemente alongadas mostram uma personagem desesperada para expor seus sentimentos que não param de vir à sua mente. Parte disto vem de sua ansiedade em ser aceita e amada, mesmo após as situações e traumas referentes ao pai. Fica nítido que a autora consegue se entregar à escrita e, não obstante, faz uma coesão cuidadosa que é eficaz e diz muito sem precisar dizer quase nada, apesar de constantemente aberta.

Apesar de uma obra altamente bem tratada, há também exageros, inclusive ao estender os conflitos morais em sua mente ou com Woodville, o único amigo da personagem a qual resta uma excelente prova da sandice que toma a protagonista. Não chega a ser cansativo, porém, há pontos em que um pouco menos de exposição alongada ajudaria, já que em boa parte da obra possui diversas entrelinhas.

Isto posto, Mathilda é um livro que choca e que causa um interessante desconforto e empatia pelos personagens. A escrita é expansiva, a narrativa é excelente e os temas, mesmo polêmicos, sabem impressionar. Ainda que seja um livro renegado pelo patriarcado de dois séculos atrás, serve para dar diversas visões sobre a dor de ser uma mulher diante das más atitudes de um homem. Mesmo assim, Mary Shelley prossegue atual e ditando sua influência.

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